Terminei de ler o ótimo A Ilha sob o mar, romance de Isabel Allende que ganhei de minha amada Lu-colegamãe Ribeiro (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010). Bem escrito como de hábito, só que dessa vez, em vez de tematizar a história chilena como costuma fazer, a autora ambientou a trama no Haiti no período da revolta dos escravos em fins do século XVIII, com a parte final narrando a vida dos que fugiram da ilha e foram para Cuba e para Nova Orleans. A narrativa histórica é bem interessante, a trama está centrada na figura de uma escrava, Zarité, e na questão da miscigenação, em especial na caracterização que Allende faz dos "mulatos", no livro abordados mais fortemente nos personagens dos filhos de escravas com os homens brancos.
Essa trama me fez lembrar de outra, que também andei relendo, e sobre a qual pretendia escrever aqui no blog mas ainda não havia encontrado tempo. Trata-se de A Escrava Isaura, clássico brasileiro de Bernardo Guimarães. Li o livro ainda na adolescência, por volta dos 15 anos, e resolvi reler agora. E fiquei impressionada ao ver que a memória que eu tinha da trama era toda a da Globo e sua novela, adaptada por Gilberto Braga, e não a descrita na obra de Bernardo Guimarães.
E o que havia na minha memória? A história de uma escrava branca, propriedade de um grande senhor de engenho provavelmente no Nordeste, que lutava por sua liberdade e contra as tiranias do sistema e desse senhor déspota e cruel. Lembrava também que Gilberto Braga tinha enfrentado problemas com a censura do governo militar, que havia proibido o uso de palavras como escravo e escravidão, porque poderiam funcionar como metáfora da situação de opressão vivenciada politicamente no período. E também lembrava de ter lido em alguns artigos que a novela era campeã de exportação entre os produtos televisivos da Rede Globo, já tendo sido vista em não sei quantos, mas mais de uma centena, de países, nos quais Lucélia Santos (que protagonizava a escrava branca) era adorada, e que especialmente em países onde havia "restrições à liberdade", como Cuba e China, o sucesso da novela era impressionante, pois sua temática universal era a da luta por liberdade e combate à opressão.
Tudo isso fazia a novela "Escrava Isaura" crescer na minha cotação. Mas tinha uma coisa que me incomodava: por que Bernardo Guimarães havia escolhido exatamente uma branca para tematizar a luta pela liberdade? Também havia lido que ele era um abolicionista aguerrido e que sua obra, escrita em 1875, tinha sido importante na configuração do imaginário pró-abolição. Mas eu pensava: como, se ele usava como referência uma escrava branca? Isso me incomodava sempre que falava da novela.
Eis que por um acaso resolvi reler o romance. E olha só as surpresas que a vida traz!: logo no primeiro parágrafo, descobri que a trama não se passa no Nordeste, nem se trata de um graaaande engenho, mas se passa em um engenho mais modesto em Campos de Goitacazes. Já mexeu no meu imaginário, porque conheço bem a região de Campos e em termos paisagísticos não dava pra encaixar muito naquela representação da Rede Globo. Mas segui adiante com o livro. E eis que de repente, quando ainda no primeiro capítulo, ao falar da relação que a mulher do Comendador (o dono original do Engenho, pai de Leôncio, o grande vilão) estabeleceu com Isaura, a escrava filha de seu marido com uma mulata, o narrador diz: "O comendador não gostava nada do singular capricho de sua esposa para com a mulatinha, capricho que qualificava de caduquice".
Eu: mulatinha? que mulatinha???? Ela num era branca, a Isaura?
Segui adiante, já encafifada. E eis que chego na seguinte cena:
" Por fim Henrique, afoito, e estouvado como era, lembrando-se que Isaura, a despeito de toda a sua formosura, não passava de uma escrava, entendeu que fazia um ridículo papel, deixando-se ali ficar diante dela em muda e extática contemplação, e chegando-se a ela com todo o desembaraço e petulância travou-lhe da mão, e...
- Mulatinha, disse, - tu não fazes idéia de quanto és feiticeira".
E segue por aí, com outras referências à cor da pele de Isaura no livro classificando-a como "mulata" ou "mulatinha". Sério, fiquei chocada. Quer dizer que ela era mulata na narrativa original???? Aí fazia sentido no discurso pró abolicionista de Bernardo Guimarães, porque nesse caso o que a diferenciava das outras escravas era a educação recebida, o que a aproximava das "sinhás" brancas. Po, aí sim tem discurso abolicionista, claro que datado e problemático etc. e tal, mas sim, aí tem lógica.
Fiquei boquiaberta com a cara de pau da Globo, gente! E a cara de pau de usarem a novela no discurso "Olha como resistimos à ditadura militar" simplesmente apagando outras lutas e resistências às formas de opressão.
Na edição que estou lendo, da editora Globo, ao final do romance existem algumas perguntas para ajudar o professor em atividades didáticas pós leitura do livro. E as fotos que ilustram essa parte são todas da novela, com sua escrava branca, alterando totalmente o sentido do livro e ajudando, mais uma vez, a fixar a hegemonia do sentido, o qual envolve embranquecimento e apagamento de lutas, como a do autor pela causa da abolição.
Sério, fiquei muito chocada. Sei que é mais do mesmo quando falamos de grande parte da indústria cultural brasileira, mas sempre bom narrar e desconstruir os sentidos fixados, e tô aqui fazendo minha parte e colocando água nesse chope da vitória. Não passarão.
Para ilustrar melhor essa disputa por sentidos, vou postar abaixo algumas capas de inúmeras edições do livro, que nos permitem perceber as disputas em termos de representação. Valia a pena um estudo sobre essas capas, procurando saber quais eram as representações que predominavam antes e depois da novela ser exibida, em 1977. Fica a dica de um bom trabalho de análise de discurso.;)