Estou lendo o sensacional "Lendo Lolita em Teerã - memória de uma resistência literária", da iraniana Azar Nafisi. A autora, professora de literatura inglesa e exilada nos EUA, narra suas memórias sobre o processo de endurecimento pós-revolução no Irã, em 1979, a suspensão de seu direito de dar aulas na universidade de Teerã, a proibição pelo regime dos romances ingleses, a obrigação do uso do véu para as mulheres em lugares públicos e as pequenas resistências que ela e suas alunas faziam cotidianamente, em especial o grupo de estudos sobre romances ingleses que mantinham, clandestinamente, na casa de Nafisi nas quintas pela manhã, durante dois anos. Nesses encontros, liam e discutiam romances e suas próprias vidas. Esse jogo de memórias e subjetividades faz desse um livro magistral.
Mas não pára por aí. A autora aproveita para fazer crítica literária de altíssimo nível, entremeada com as fragmentações da memória e uma narrativa muito bem costurada. É romance com crítica literária, acredito que um sonho daquela professora que achava que a ficção era fundamental para a vida. Cada parte do livro traz muitas referências literárias, mas é costurada em torno de algum grande autor ou romance. Já terminei as duas primeiras partes, dedicadas a Nabokov e ao "Grande Gatsby". Estou no meio da longa parte três, que tem como fio condutor Henry James. A última é dedicada a Jane Austen.
Sobre a primeira parte, gostaria de fazer dois coments. No mesmo dia em que consertei minha bicicleta e fiz coments no twitter sobre a sensação maravilhosa de voltar a sentir o vento batendo no meu rosto ao andar de bike, li um trecho em que a autora e suas alunas comentavam o que mais as impressionaram quando leram "Madame Bovary", de Flaubert. E o vento batendo no rosto de Emma Bovary era uma das imagens mais fortes. Não entendi muito bem este trecho, até me deparar com esse outro, em que tudo ficou claro:
"Esses estudantes, como toda a sua geração, eram diferentes dos da minha geração em um aspecto fundamental. Minha geração se lamentava de uma perda, do vazio em nossas vidas que foi criado quando nosso passado nos foi roubado, o que nos exilou em nosso próprio país. Ainda assim, tínhamos um passado para comparar com o presente; tínhamos memórias e imagens do que nos fora tirado. Minhas meninas falavam constantemente de beijos roubados, de filmes que jamais viram e do vento que nunca sentiram no rosto." (p. 99)
Fiquei pasma, nunca tinha pensado sobre isso: o vento no rosto de Emma Bovary era expressão máxima de liberdade para aquelas mulheres que, fadadas a usarem sempre em público o véu, não experimentavam a pequena mas inesquecível sensação do vento batendo no rosto!!! Nos obriga a pensar e muito, uma cena dessas, não é?
Ainda na parte referente a Nabokov, agora um coment de caráter mais literário: finalmente encontrei uma leitura de "Lolita" com a qual me identifiquei plenamente. Nas duas vezes que li o romance e na vez em que assisti ao filme, sempre pensei que os ardis do enredo não poderiam me deixar esquecer o essencial: tratava-se de uma criança de 12 anos! Não importa se sexualizada, se interesseira, se manipuladora. Uma criança, sempre, portanto, vítima, sempre. De certa forma, é este o princípio que precisamos ter no debate sobre diminuição da idade em crimes que envolvam maioridade penal. Temos que remover o véu das verdades aparentes (é um criminoso, num tem mais jeito, age como um adulto etc.) e lembrar: mas é uma criança. E tem que ser cuidada como tal. E não violentada, sujeitada, explorada, massacrada, encarcerada. Adorei a leitura que Nafisi faz de "Lolita", me senti em casa.
Por fim, para este post, um coment tb literário sobre sua interpretação acerca de "O grande Gatsby", de Fitzgerald. Em meio a discussões polêmicas com seus alunos, Nafisi considera que "Gatsby" é, na verdade, um romance sobre a desilusão. Concordo plenamente. E lembrei-me de um dia distante, em uma aula da pós-graduação em História, disciplina que fiz como complemento aos meus créditos no mestrado em Antropologia, em que discutíamos em sala o romance "Clara dos Anjos", de Lima Barreto. E a professora, sempre soberba, uma de umas soberbas que já conheci, dizia que era um romance sobre a dominação das classes, sobre traição e dominação. Lembro-me que discordei, dizendo que achava "Clara dos Anjos", antes de tudo, um romance sobre a desilusão, todos os personagens eram desiludidos, independentemente das classes e posições que ocupavam (de certa forma, este é o argumento de Nafisi sobre Gatsby). E a professora discordou de forma bem grosseira, fechando ali a discussão. Tempos mais tardes, li um texto dessa professora em que ela falava, em determinado trecho, sobre "Clara dos Anjos", e adivinhem?, ela concluía que se tratava de um grande romance sobre a desilusão. Quem é essa gente, Brasil?
Mas a Nafisi, vou te falar, me senti hermanada...
Aposto q vai ter mais post sobre "Lendo Lolita em Teerã"...
Mas não pára por aí. A autora aproveita para fazer crítica literária de altíssimo nível, entremeada com as fragmentações da memória e uma narrativa muito bem costurada. É romance com crítica literária, acredito que um sonho daquela professora que achava que a ficção era fundamental para a vida. Cada parte do livro traz muitas referências literárias, mas é costurada em torno de algum grande autor ou romance. Já terminei as duas primeiras partes, dedicadas a Nabokov e ao "Grande Gatsby". Estou no meio da longa parte três, que tem como fio condutor Henry James. A última é dedicada a Jane Austen.
Sobre a primeira parte, gostaria de fazer dois coments. No mesmo dia em que consertei minha bicicleta e fiz coments no twitter sobre a sensação maravilhosa de voltar a sentir o vento batendo no meu rosto ao andar de bike, li um trecho em que a autora e suas alunas comentavam o que mais as impressionaram quando leram "Madame Bovary", de Flaubert. E o vento batendo no rosto de Emma Bovary era uma das imagens mais fortes. Não entendi muito bem este trecho, até me deparar com esse outro, em que tudo ficou claro:
"Esses estudantes, como toda a sua geração, eram diferentes dos da minha geração em um aspecto fundamental. Minha geração se lamentava de uma perda, do vazio em nossas vidas que foi criado quando nosso passado nos foi roubado, o que nos exilou em nosso próprio país. Ainda assim, tínhamos um passado para comparar com o presente; tínhamos memórias e imagens do que nos fora tirado. Minhas meninas falavam constantemente de beijos roubados, de filmes que jamais viram e do vento que nunca sentiram no rosto." (p. 99)
Fiquei pasma, nunca tinha pensado sobre isso: o vento no rosto de Emma Bovary era expressão máxima de liberdade para aquelas mulheres que, fadadas a usarem sempre em público o véu, não experimentavam a pequena mas inesquecível sensação do vento batendo no rosto!!! Nos obriga a pensar e muito, uma cena dessas, não é?
Ainda na parte referente a Nabokov, agora um coment de caráter mais literário: finalmente encontrei uma leitura de "Lolita" com a qual me identifiquei plenamente. Nas duas vezes que li o romance e na vez em que assisti ao filme, sempre pensei que os ardis do enredo não poderiam me deixar esquecer o essencial: tratava-se de uma criança de 12 anos! Não importa se sexualizada, se interesseira, se manipuladora. Uma criança, sempre, portanto, vítima, sempre. De certa forma, é este o princípio que precisamos ter no debate sobre diminuição da idade em crimes que envolvam maioridade penal. Temos que remover o véu das verdades aparentes (é um criminoso, num tem mais jeito, age como um adulto etc.) e lembrar: mas é uma criança. E tem que ser cuidada como tal. E não violentada, sujeitada, explorada, massacrada, encarcerada. Adorei a leitura que Nafisi faz de "Lolita", me senti em casa.
Por fim, para este post, um coment tb literário sobre sua interpretação acerca de "O grande Gatsby", de Fitzgerald. Em meio a discussões polêmicas com seus alunos, Nafisi considera que "Gatsby" é, na verdade, um romance sobre a desilusão. Concordo plenamente. E lembrei-me de um dia distante, em uma aula da pós-graduação em História, disciplina que fiz como complemento aos meus créditos no mestrado em Antropologia, em que discutíamos em sala o romance "Clara dos Anjos", de Lima Barreto. E a professora, sempre soberba, uma de umas soberbas que já conheci, dizia que era um romance sobre a dominação das classes, sobre traição e dominação. Lembro-me que discordei, dizendo que achava "Clara dos Anjos", antes de tudo, um romance sobre a desilusão, todos os personagens eram desiludidos, independentemente das classes e posições que ocupavam (de certa forma, este é o argumento de Nafisi sobre Gatsby). E a professora discordou de forma bem grosseira, fechando ali a discussão. Tempos mais tardes, li um texto dessa professora em que ela falava, em determinado trecho, sobre "Clara dos Anjos", e adivinhem?, ela concluía que se tratava de um grande romance sobre a desilusão. Quem é essa gente, Brasil?
Mas a Nafisi, vou te falar, me senti hermanada...
Aposto q vai ter mais post sobre "Lendo Lolita em Teerã"...