Pensei muito antes de escrever aqui, porque sempre fico constrangida de falar do que sinto quando penso que tem gente mais diretamente atingida do que eu. Mas depois entendi que preciso escrever esse texto, um pouco por mim, porque a palavra cura e eu to numa tristeza danada, mas principalmente pelo dever moral de dar testemunho do que significava o Museu Nacional e como sua perda, resultado de um projeto de desmonte da cultura e da educação neste país, não pode passar batida. Devo isso a minhas amigas e amigos que lá trabalham, pelos professores-mestres que me formaram, por todo o esforço que inúmeras pessoas que atuaram e atuam naquele espaço fizeram e fazem, mesmo em situação enormemente precarizada, para que o Museu Nacional fosse o que era.
Eu poderia contar muitas histórias, porque foram muitos anos, como turista, como visitante, como aluna do mestrado e do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, nosso amado PPGAS, já como professora da UFF em eventos e bancas por lá e como amiga de meus amigos que lá trabalham. Escolhi duas, porque acho que elas são síntese do que gostaria de lembrar e testemunhar aqui.
1) Lembro como se fosse hoje quando, assim que terminei a graduação em Comunicação, fui com o Gustavo Barbosa dar uma passada no Museu para conhecer o PPGAS, tínhamos vontade de continuar estudando, e achávamos que antropologia poderia ser um caminho legal depois da comunicação. Lembro que ficamos encantados com aquele jardim onde ficava o PPGAS, tinha arara, tinha banco pra sentar, tinha árvore. Pegamos as informações, fizemos projetos, mas não rolou naquela época. Eu fui trabalhar em jornal, mas naquele dia eu pensei: "taí, gostei desse lugar, ainda vou estudar aqui" (Gustavo também acabou sendo aluno de lá posteriormente, aquela visitinha foi premonitória). Cinco anos depois, já ciente de que não queria atuar em jornalismo de mercado, fiz a prova pra lá, passei e iniciei, em 1993, uma longa história, que, entre mestrado e doutorado, com paradinha no meio, só se completou em 2002, quando defendi meu doutorado (lembro que fiz uma conta quando tava imprimindo minha tese pra entregar pra banca que me horrorizou: tinha passado três copas naquele Museu! Lembro que eu saia das aulas pra ouvir no rádio o resultado dos jogos crente que tava sendo discreta e quando eu voltava pra sala todo mundo ficava me perguntando, inclusive o professor, isso na copa de 1994!). Tive a honra e a sorte de ter sido orientada por dois grandes professores, no mestrado pelo professor Gilberto Velho e no doutorado pelo professor Antonio Carlos de Souza Lima, esse meu mestre para a vida inteira, que me ensinou uma grande parte do que sei hoje sobre dar aula, pesquisar, orientar e aprender com a vida, e que me ofereceu, generosamente, também sua amizade, que me enche de alegria diariamente. Grande parte do que sou hoje, academicamente falando, devo ao PPGAS, a seus professores e funcionários, a sua biblioteca INIGUALÁVEL, com a qual mantive uma relação amorosa para além dos tempos de estudante, recorrendo a ela quando não achava alguma coisa em outro lugar ("Não tem no PPGAS, não tem em lugar nenhum", a gente costumava dizer quando indicava uma bibliografia difícil pra alguém), perturbei muito Cristina, Isabel e Carlinha pra levar mais de cinco livros pra casa... imagina, eu, uma apaixonada que sou por livros, com uma biblioteca daquelas, eu ficava louca!
Mas tinha mais do que livro. Tnha muita vida, amigos e desafetos, debates e brigas, críticas e deboches, tinha VIDA!!!!Tinha muito gente séria e compromissada dedicando suas vidas às pesquisas ali. Eu queria agradecer muito aos professores que me atravessaram mais fortemente, João Pacheco de Oliveira, Gilberto Velho, Antônio Carlos de Souza Lima, Giralda Seyferth, Moacir Palmeira e Luiz Fernando Dias Duarte, suas aulas transformaram o meu mundo e, como disse minha amada amiga Adriana Vianna, egressa também do PPGAS e hoje brilhante professora e pesquisadora daquela instituição, ali pude aprender mais do que imaginei ser possível. Ter passado por aquele PPG foi uma experiência arrebatadora e se hoje sou a professora que sou devo muito, mas muito ao Museu Nacional.
2) Quero contar uma segunda coisa: já como professora, num certo período antes de entrar na universidade pública, em que dei aulas em várias universidades privadas do Rio de Janeiro, tive a oportunidade de visitar o Museu, não o PPGAS, mas o Museu Nacional, com suas exposições, acervo, aquela belezura que era o xodó de tanta gente, que fazia fila pra visitá-lo no domingo, o "Museu mais amado", como disse minha amiga Adriana Facina, também brilhante professora e pesquisadora daquela institução, também egressa de sua formação. Peguei uma turma de cinco alunos que eu tinha no curso de Antropologia que eu dava para desenho industrial na Silva e Souza, em Bonsucesso, enfiei no meu fiat uno e falei: "hoje vamos ver a materialidade das coisas, vamos no Museu Nacional". Do grupo, três não conheciam o Museu, outros dois tinham ido na infância. E quero falar dessa experiência: naquela visita, éramos seis crianças vendo tudo, maravilhados, nos divertindo, aprendendo. Era uma época pré foto, pq isso foi lá pros idos de 1997, sei lá. Ficou tudo guardado na parede da memória. Naquele dia eu entendi o poder daquele Museu, como ele falava com as pessoas, não importando a idade. E isso aumentou ainda mais meu amor, que já era imenso.
Acompanhei o descaso com o Museu, ele não vem de hoje, obviamente. Faltou investimento e vontade política em sucessivos governos para cuidar daquele patrimônio material, científico, afetivo, cultural e profissional. Mas nos últimos anos a situação piorou bastante, como revelam os depoimentos de quem lá trabalhava. Porque há um evidente projeto político de estrangulamento da cultura e da ciência nesse país, agravado muito pela PEC do fim do mundo, a que congela os investimentos federais por 20 anos, atingindo especialmente as áreas da saúde, da cultura e da educação. Estão pegando fogo diariamente o SUS, as escolas e universidades públicas, os projetos e bolsas de pesquisa, os prédios que abrigam a memória e a história do país, os pontos de cultura, a juventude negra, as favelas sob intervenção, as moradias precarizadas pela falta de políticas habitacionais, os ônibus e trens sucateados... é muito coisa que vem sendo queimada diariamente, gente! Precisamos lutar contra isso, porque não podemos deixar essa brasa sendo alimentada e virando essas labaredas apocalíticas daquelas imagens dolorosas do nosso amado Museu pegando fogo!
Incrível nesse momento ter que dizer o quanto é canalha criminalizar os profissionais da universidade, dos bombeiros, pelo que aconteceu. Colocar a culpa em quem faz milagre pra continuar trabalhando em situação precária, eu, como professora de universidade pública, sei bem do que estamos falando, é inaceitável. A culpa é do projeto político de sucateamento e precarização da saúde, educação e cultura, de nossa elite deslumbrada e cínica. Sem perdoar nenhum governo federal, mas olhando os dados e vendo o que vem acontecendo nos últimos três anos. É um projeto nefasto e, se não pararmos isso agora, teremos um custo ainda maior.
Por fim, queria dizer que ontem, no silêncio de minha tristeza, eu lembrava que todas as vezes em que eu ia no Museu e no PPGAS para um evento, uma banca, uma visita, uma passadinha na biblioteca, eu sempre dava uma sentadinha naquele jardim, não importava se eu estava atrasada ou não, pra dar uma respirada, e pensava: "quando eu me aposentar vou tirar uns dias pra vir ficar lendo aqui". Com a aposentadoria em risco e aquele lugar tão poderoso e lindo destruído, fico pensando como é difícil sonhar em tempos sombrios. Não podemos deixar que roubem nossos projetos de um mundo melhor, nossos sonhos e nossos lugares amados. Não desistiremos! Luto é luta!
Por fim, um abraço especial pra Fernanda Guedes, funcionária há 15 anos do Museu, e que defendeu na sexta passada sua dissertação de mestrado pelo PPGCOM/UFF exatamente sobre o Museu Nacional e a relação do público com este espaço. Foi uma defesa linda e emocionante, uma homenagem ao Museu com toda a vida que ele continha. Nesse momento de tristeza, é o que eu vou guardar no coração. Obrigada, Fernanda!
E, pra terminar, três fotos de um dia especialmente feliz: a banca de titular de amado Antonio Carlos de Souza Lima. Dia de festa, de consagração, de afeto. Dia de vida, o que guardarei na parede da memória porque a gente precisa sobreviver e seguir na luta.
Eu poderia contar muitas histórias, porque foram muitos anos, como turista, como visitante, como aluna do mestrado e do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, nosso amado PPGAS, já como professora da UFF em eventos e bancas por lá e como amiga de meus amigos que lá trabalham. Escolhi duas, porque acho que elas são síntese do que gostaria de lembrar e testemunhar aqui.
1) Lembro como se fosse hoje quando, assim que terminei a graduação em Comunicação, fui com o Gustavo Barbosa dar uma passada no Museu para conhecer o PPGAS, tínhamos vontade de continuar estudando, e achávamos que antropologia poderia ser um caminho legal depois da comunicação. Lembro que ficamos encantados com aquele jardim onde ficava o PPGAS, tinha arara, tinha banco pra sentar, tinha árvore. Pegamos as informações, fizemos projetos, mas não rolou naquela época. Eu fui trabalhar em jornal, mas naquele dia eu pensei: "taí, gostei desse lugar, ainda vou estudar aqui" (Gustavo também acabou sendo aluno de lá posteriormente, aquela visitinha foi premonitória). Cinco anos depois, já ciente de que não queria atuar em jornalismo de mercado, fiz a prova pra lá, passei e iniciei, em 1993, uma longa história, que, entre mestrado e doutorado, com paradinha no meio, só se completou em 2002, quando defendi meu doutorado (lembro que fiz uma conta quando tava imprimindo minha tese pra entregar pra banca que me horrorizou: tinha passado três copas naquele Museu! Lembro que eu saia das aulas pra ouvir no rádio o resultado dos jogos crente que tava sendo discreta e quando eu voltava pra sala todo mundo ficava me perguntando, inclusive o professor, isso na copa de 1994!). Tive a honra e a sorte de ter sido orientada por dois grandes professores, no mestrado pelo professor Gilberto Velho e no doutorado pelo professor Antonio Carlos de Souza Lima, esse meu mestre para a vida inteira, que me ensinou uma grande parte do que sei hoje sobre dar aula, pesquisar, orientar e aprender com a vida, e que me ofereceu, generosamente, também sua amizade, que me enche de alegria diariamente. Grande parte do que sou hoje, academicamente falando, devo ao PPGAS, a seus professores e funcionários, a sua biblioteca INIGUALÁVEL, com a qual mantive uma relação amorosa para além dos tempos de estudante, recorrendo a ela quando não achava alguma coisa em outro lugar ("Não tem no PPGAS, não tem em lugar nenhum", a gente costumava dizer quando indicava uma bibliografia difícil pra alguém), perturbei muito Cristina, Isabel e Carlinha pra levar mais de cinco livros pra casa... imagina, eu, uma apaixonada que sou por livros, com uma biblioteca daquelas, eu ficava louca!
Mas tinha mais do que livro. Tnha muita vida, amigos e desafetos, debates e brigas, críticas e deboches, tinha VIDA!!!!Tinha muito gente séria e compromissada dedicando suas vidas às pesquisas ali. Eu queria agradecer muito aos professores que me atravessaram mais fortemente, João Pacheco de Oliveira, Gilberto Velho, Antônio Carlos de Souza Lima, Giralda Seyferth, Moacir Palmeira e Luiz Fernando Dias Duarte, suas aulas transformaram o meu mundo e, como disse minha amada amiga Adriana Vianna, egressa também do PPGAS e hoje brilhante professora e pesquisadora daquela instituição, ali pude aprender mais do que imaginei ser possível. Ter passado por aquele PPG foi uma experiência arrebatadora e se hoje sou a professora que sou devo muito, mas muito ao Museu Nacional.
2) Quero contar uma segunda coisa: já como professora, num certo período antes de entrar na universidade pública, em que dei aulas em várias universidades privadas do Rio de Janeiro, tive a oportunidade de visitar o Museu, não o PPGAS, mas o Museu Nacional, com suas exposições, acervo, aquela belezura que era o xodó de tanta gente, que fazia fila pra visitá-lo no domingo, o "Museu mais amado", como disse minha amiga Adriana Facina, também brilhante professora e pesquisadora daquela institução, também egressa de sua formação. Peguei uma turma de cinco alunos que eu tinha no curso de Antropologia que eu dava para desenho industrial na Silva e Souza, em Bonsucesso, enfiei no meu fiat uno e falei: "hoje vamos ver a materialidade das coisas, vamos no Museu Nacional". Do grupo, três não conheciam o Museu, outros dois tinham ido na infância. E quero falar dessa experiência: naquela visita, éramos seis crianças vendo tudo, maravilhados, nos divertindo, aprendendo. Era uma época pré foto, pq isso foi lá pros idos de 1997, sei lá. Ficou tudo guardado na parede da memória. Naquele dia eu entendi o poder daquele Museu, como ele falava com as pessoas, não importando a idade. E isso aumentou ainda mais meu amor, que já era imenso.
Acompanhei o descaso com o Museu, ele não vem de hoje, obviamente. Faltou investimento e vontade política em sucessivos governos para cuidar daquele patrimônio material, científico, afetivo, cultural e profissional. Mas nos últimos anos a situação piorou bastante, como revelam os depoimentos de quem lá trabalhava. Porque há um evidente projeto político de estrangulamento da cultura e da ciência nesse país, agravado muito pela PEC do fim do mundo, a que congela os investimentos federais por 20 anos, atingindo especialmente as áreas da saúde, da cultura e da educação. Estão pegando fogo diariamente o SUS, as escolas e universidades públicas, os projetos e bolsas de pesquisa, os prédios que abrigam a memória e a história do país, os pontos de cultura, a juventude negra, as favelas sob intervenção, as moradias precarizadas pela falta de políticas habitacionais, os ônibus e trens sucateados... é muito coisa que vem sendo queimada diariamente, gente! Precisamos lutar contra isso, porque não podemos deixar essa brasa sendo alimentada e virando essas labaredas apocalíticas daquelas imagens dolorosas do nosso amado Museu pegando fogo!
Incrível nesse momento ter que dizer o quanto é canalha criminalizar os profissionais da universidade, dos bombeiros, pelo que aconteceu. Colocar a culpa em quem faz milagre pra continuar trabalhando em situação precária, eu, como professora de universidade pública, sei bem do que estamos falando, é inaceitável. A culpa é do projeto político de sucateamento e precarização da saúde, educação e cultura, de nossa elite deslumbrada e cínica. Sem perdoar nenhum governo federal, mas olhando os dados e vendo o que vem acontecendo nos últimos três anos. É um projeto nefasto e, se não pararmos isso agora, teremos um custo ainda maior.
Por fim, queria dizer que ontem, no silêncio de minha tristeza, eu lembrava que todas as vezes em que eu ia no Museu e no PPGAS para um evento, uma banca, uma visita, uma passadinha na biblioteca, eu sempre dava uma sentadinha naquele jardim, não importava se eu estava atrasada ou não, pra dar uma respirada, e pensava: "quando eu me aposentar vou tirar uns dias pra vir ficar lendo aqui". Com a aposentadoria em risco e aquele lugar tão poderoso e lindo destruído, fico pensando como é difícil sonhar em tempos sombrios. Não podemos deixar que roubem nossos projetos de um mundo melhor, nossos sonhos e nossos lugares amados. Não desistiremos! Luto é luta!
Por fim, um abraço especial pra Fernanda Guedes, funcionária há 15 anos do Museu, e que defendeu na sexta passada sua dissertação de mestrado pelo PPGCOM/UFF exatamente sobre o Museu Nacional e a relação do público com este espaço. Foi uma defesa linda e emocionante, uma homenagem ao Museu com toda a vida que ele continha. Nesse momento de tristeza, é o que eu vou guardar no coração. Obrigada, Fernanda!
E, pra terminar, três fotos de um dia especialmente feliz: a banca de titular de amado Antonio Carlos de Souza Lima. Dia de festa, de consagração, de afeto. Dia de vida, o que guardarei na parede da memória porque a gente precisa sobreviver e seguir na luta.