Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
“Infelizmente, os vândalos não tinham youtube nem facebook...”

Tenho discutido em sala, com alunos, acerca da necessidade de se disputar os sentidos na luta pela hegemonia do significado. Por força das circunstâncias, parte da discussão acabou recaindo sobre o signo “vândalos”, muito em voga nesse contexto de mobilizações sociais. “Vândalos” foi o termo eleito pela grande mídia para classificar e, automaticamente, desclassificar a ação de parte dos manifestantes, em especial a que envolvia enfrentamento com a polícia, uso de pedras e força, destruição de patrimônio privado e público, saques etc. Mas, de forma geral, passou a ser sinônimo claro de toda ação envolvendo enfrentamento com a polícia, mesmo com as evidências indicando que a brutalidade, a violência, o atentado à vida e à ordem partiram, na maior parte das vezes, da própria polícia, o que levaria, no mínimo, a uma necessidade de relativizar-se quem, nestes casos, seriam os “verdadeiros” vândalos. Esta é uma forma de lutar pelo sentido e tem sido usada: o de associar o mesmo tom pejorativo e estigmatizante que a palavra carrega aos que ocupam o lugar da ordem e da civilização, colando o rótulo no comportamento policial e não no dos manifestantes.
Esta é a mesma estratégia que encontramos em cartazes e imagens que mostram descasos na área da saúde, educação, transportes, com hospitais e escolas deteriorados, serviços precarizados, mau uso do dinheiro público, ilustrados com frases do tipo: “quem são os verdadeiros vândalos?” e “Vandalismo é isso”. Também nesse caso, a disputa parte de um reconhecimento do significado vitorioso (“vândalos” são os que atentam contra a ordem pública e deterioram a cidade e a sociedade), e o que se desloca em termos de disputa é o sujeito em quem se colará o preconceito, e não o sentido da palavra em si.
Entendo que talvez seja importante, no entanto, lutar pela palavra em si, pelo signo enquanto significante deslizante, peça fundamental na arena de disputas pelo significado. Segundo a wikipedia, o primeiro a associar o termo com um “espírito de destruição” sabia perfeitamente disso, como podemos ver no trecho abaixo:
“O termo "vandalismo" como sinônimo de espírito de destruição foi cunhado no final do século XVIII, , em janeiro de 1794, por Henri Grégoire, bispo constitucional de Blois; ele cunhou o termo e o tornou comum através de uma série de relatórios para a Convenção, denunciando a destruição de artefatos culturais como monumentos, pinturas, livros que estavam sendo destruídos como símbolo de um ódio ao passado de “feudalismo”, "tirania da realeza" e "preconceito religioso", durante o Reino do Terror. Em seu livro Memoirs, ele escreveu: "Inventei a palavra para abolir o ato". “(linkaqui, o grifo obviamente é meu!)
“Inventei a palavra para abolir o ato”! Henri Grégoire estava por dentro: o discurso é ato, cria mundo, gera não só a interpretação da realidade, mas a própria realidade, que para além de existir materialmente, é sempre construção social. Então precisamos, penso eu, assim como Grégoire, re-inventar a palavra para instaurar o ato. Pois quem eram os tais dos vândalos? O que eles tinham, fizeram, criaram, para além da representação consagrada e hegemônica de terem sido o tal povo que saqueou Roma em 455, “destruindo muitas obras primas de arte que se perderam para sempre” (no mesmo verbete da Wikipedia que citei acima). Aliás, quem não saqueou Roma naquele contexto, não é, minha gente??? Vândalos ficaram com a fama, meio injustamente (esse argumento tá aqui nesse simpático trabalho escolar).
Mas nas duas fontes que citei até aqui, o verbete e o trabalho, não temos praticamente uma única linha sobre a cultura vândala (e nem em inúmeras outras fontes que encontramos quando digitamos no google as palavras-chave “cultura dos vândalos” e outras em torno destas). Só sobre sua suposta origem geográfica, que seria ali pela Noruega, segundo consta. Ponto engraçado esse, pois a Noruega num me parece um lugar muito atrasado hoje em dia, se quiséssemos usar os mesmos critérios do ocidente “civilizado” para desclassificar um povo/grupo/etnia como vândala, atrasada, bárbara, selvagem etc. Se fossemos por esse caminho, poderíamos perguntar: ué, então a herança vândala num seria tão perversa assim? Pois taí, mais um sentido pra disputar.... mas não é esse o caminho que escolheremos percorrer aqui.
Continuando, as fontes só falam deste aspecto e, principalmente, da invasão vândala na parte oeste da Europa, na França, Itália, Portugal, Espanha... e destruindo tudo, segundo as fontes e o senso comum e o discurso em ato do Grégoire e a mídia tradicional e as autoridades brasileiras. Ah, e parece que eles migraram para oeste forçadamente, porque foram atacados pelos hunos. Pera aí: então eles reagiram a uma agressão? Então os hunos seriam os “verdadeiros” vândalos??? Num parece semelhante com o que apontei acima, no caso recente brasileiro? Não faltam disputas significativas, pelo que podemos ver... mas também não seguiremos por essa vereda.
Pois, para concluir essa parte, quer dizer que as principais referências sobre os vândalos são construídas pelos povos que, supostamente, eles destruíram? Não se tem algo mais vândalo, por assim dizer, sobre o ser vândalo, só um olhar ocidentalizado sobre a identidade vândala? Aí fica complicado, né?  Não parece semanticamente muito justo que a representação sobre o outro seja construída na ausência do outro, só abarcando o outro visto pelos olhos do “um”, principalmente um “um” rancoroso e posteriormente vitorioso. Mais uma vez, não parece semelhante com o que faz a mídia no que tange às representações dos manifestantes como vândalos? Não fica faltando a representação que os “vândalos” teriam/têm deles mesmos?
Não sou uma especialista em História romana nem vândala etc. Tô aqui na humildade procurando referência sobre a cultura dos vândalos, no bom e velho google, por que fiquei curiosa sobre essa tal “cultura vândala”. Tá difícil. As referências são quase todas no naipe do que citei acima (origem nebulosa e saque de Roma etc.). Mas a gente pode fazer um exercício imaginativo, creio eu (claro que deve ter muito livro porreta sobre a cultura vândala, penso, mas num tá fácil de achar na internet, não. Então, vamos seguir com o que encontramos). Vamos pedir ajuda dessa fonte aqui. Nela, o autor descreve os povos “bárbaros” (vândalos dentre eles), assim:
“A maioria destes povos organizavam-se em aldeias rurais, compostas por habitações rústicas feitas de barro e galhos de árvores. Praticavam o cultivo de cereais como, por exemplo, o trigo, o feijão, a cevada e a ervilha. Criavam gado para obter o couro, a carne e o leite. Dedicavam-se também às guerras como forma de saquear riquezas e alimentos. Nos momentos de batalhas importantes, escolhiam um guerreiro valente e forte e faziam dele seu líder militar. Praticavam uma religião politeísta, pois adoravam deuses representantes das forças da natureza (...).”
Sei lá, posso imaginar um povo festeiro, com uma rica cultura rural, uma mitologia complexa e interessante, uma ética ligada a valores como honra e valentia, num sei, coisas assim. Devem ter sido muito interessantes, esses vândalos. E provavelmente deixaram uma contribuição rica para o caldeirão que formou a cultura ocidental no decorrer da Idade Média, depois que amalgaram com os povos do oeste. Nosso autor aí de cima concorda:
“A mistura da cultura germânica com a romana formou grande parte da cultura medieval, pois muitos hábitos e aspectos políticos, artísticos e econômicos permaneceram durante toda a Idade Média”.
Temos, então, um outro quadro, de difícil apreensão. Os vândalos teriam uma riqueza cultural que não conhecemos, porque a história que nos chega não foi escrita por eles. Contribuíram, assim como outros povos, para a cultura ocidental, mas seu registro na história é o de saqueadores e destruidores. Passaram a ser estigmatizados em um momento, segundo o wikipedia, de atribuição explícita de sentido, no século XVIII, pelo tal Grégoire. E é neste recorte de sentido, apresentado como verdadeiro, que a mídia hegemônica ancora a representação dos manifestantes brasileiros atuais como vândalos.

Minha proposta? Lutar pela positivação da palavra “vândalos”, e não negá-la e empurrá-la como uma praga semântica para o outro. Vamos nos apropriar do vandalismo como essa riqueza cultural que não foi contemplada e reconhecida, como essa voz que nunca foi ouvida, como esse povo que sob pressão teve que se mover e construir novos sentidos para sua vida... Vamos ser vândalos com orgulho, mas não por que quebramos tudo, mas por que somos aqueles que não puderam ter voz na história, que não tiveram sua cultura registrada e reconhecida, que são traduzidos pela hegemonia com a perversão do sentido único, fetichizados pelo olhar colonizador em um misto de desejo e repulsa. Vamos nos libertar do sentido dado, pronto, fechado, e recusar não só estigma de ser classificado como vândalo = baderneiro, mas recusar principalmente o estigma a que foram confinados os próprios vândalos, de quem sabemos tão pouco. Os vândalos também foram oprimidos pela história hegemônica e, de certa forma, também é nosso dever lutar por eles. Infelizmente, os vândalos não tinham nem youtube nem facebook e acabaram sendo relegados, pelo olhar dominante, a um lugar fixado: o da destruição e da ausência de história própria. Devemos, por eles e por nós, desconfiar disso e lutar pela flexibilidade dos sentidos. Somos todos vândalos, não somos todos vândalos, nem mesmo os vândalos, pelo visto, eram os vândalos... e é isso o que importa da cultura, como me ensinou Stuart Hall, que ela seja essa imensa “arena de disputas pelo direito de significar”.



"Enfim, ser "vândalo" é atrapalhar um projeto estabelecido de cidade, é romper com a ordem (raríssimos são os contextos onde consigo ouvir esta palavra sem sentir calafrios, se existem, no momento, eu não me recordo!), sair do lugar das exclusões e dos silêncios... Mas isso, todo bárbaro ("o outro") é, não é mesmo? Sem dúvida, mas o estigma histórico colocado aos "Vândalos" nos indica o peso, o grau da ameaça, da potência e das transformações que geraram pra "civilização"... Logo, carregar, na atualidade, os mesmos estigmas é imprimir aos manifestantes a mesma potência transformadora. Ameaçadora. E, só por sentir o medo na fala do opressor, qualquer estigma vale a pena" (este ótimo parágrafo final, escrito a partir da reflexão acima, é uma colaboração da Patricia Cormack, disputando os sentidos e propondo outras leituras. Show!)
4 Responses
  1. Izadora Carvalho Says:

    Ana Enne, que saudades da suas aulas! Pelo visto tenho que frequentar mais a Baiúca, esse post está sensacional!!! Nesse artigo, você ajudou imensamente na compreensão da semiótica a mim e a outros com certeza! Essa dialética entre as definições do "Eu" e do "Outro", feita normalmente por mecanismos de exclusão e oposição de sentidos, por si só, é muito pobre. E temos que nos apropriar desses discursos estigmatizantes e construir novos sentidos com elas, porque como você mesma disse no artigo acima "...o discurso é ato, cria mundo, gera não só a interpretação da realidade, mas a própria realidade, que para além de existir materialmente, é sempre construção social." PERFEITO!!!


  2. Izadora querida, adorei seu coment, venha sempre me visitar, comente sempre! bjs


  3. E eu descansando a cabeça das minhas obrigações no seu blog...eis que me deparo com o que estou estudando! Como eu faço referência de blog?! Não é pergunta retórica!
    Ana, você é simplesmente espetacular...e dá pra sentir sua aula lendo o texto. Mandando pro Nelson com quem ando "brigando" por conta disso. rsrs


  4. oi, querida Monica, tb adorei seu coment. Olha, referência de blog, que eu saiba, é igual a qq referência de site, tem q botar o autor, título do artigo, endereço do blog e data do acesso. bjs grandes!