Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Estamos em meio a um processo complexo e deslizante, com muitos ângulos a serem considerados, por isso tenho distribuído, partilhado e sugerido que a gente veja, leia, ouça, experiencie muitas coisas e evite fechar conclusões. Muita coisa ainda vai acontecer, mas gostaria de tecer aqui alguns pontos sobre as mobilizações sociais das últimas semanas, fruto de algumas reflexões, sem maiores pretensões à verdade e disposta ao diálogo:
1) As mobilizações colocaram as questões políticas na agenda coletiva das conversações, em meio a uma copa de futebol, que normalmente mobiliza o imaginário geral. Isso, a meu ver, é um grande ganho;
2) Também considero um ganho, ainda que em suas múltiplas discursividades e ambiguidades, que as juventudes urbanas contemporâneas possam ter visibilidade e expressão. É importante para todos nós que esses agentes possam se colocar, e é justo com essa geração, muito oprimida pela sociedade de consumo, pela hedonização da vida, pelo fardo da história que cobra dela que seja ativa e militante, pela precarização das condições de vida e de trabalho, pelas ansiedades sintomáticas da sociedade pós-moderna.
3) Outro ganho, embora muito doloroso em todos os sentidos possíveis: explicitou publicamente a truculência dessa polícia repressora e excludente, fazendo com que parte considerável da população sentisse na pele o que sofrem historicamente as classes oprimidas economicamente, em especial os moradores de periferia, favelas, subúrbios e os jovens afro-descendentes, inclusive dando visibilidade em escala mundial a imagens dessa violência bruta e vândala das polícias brasileiras de forma geral. Talvez, nesse ponto, tenhamos, a partir de agora, um esforço mais coletivo de luta em torno dessas ações opressivas contra as quais temos que continuar permanentemente denunciando e nos manifestando, independentemente de quem seja vitimado por essa truculência totalitária e autorizada pelo Estado, a qual NÃO PODEMOS ACEITAR.
4) Mais um ganho, que em parte resulta de algumas perdas: ficou claro, a meu ver, que os movimentos sociais tradicionais precisam se recolocar, compreender esse processo histórico e repensarem suas formas de atuação, pois sua ausência num manifesto desse monte e repercussão é expressivo de um esvaziamento de seu lugar na agenda coletiva. Precisam aprender a falar com as múltiplas juventudes, suas formas de expressão, com as novas tecnologias, com a lógica das redes. Precisam, urgentemente, se recolocarem no processo histórico, porque não podemos abrir mão de sua experiência e habilidades, aprendendo com os jovens, reconhecendo a necessidade de novas abordagens, rompendo com lugares confortáveis de poder;
5)  Os novos movimentos sociais, especialmente de jovens de esquerda, também precisam aprender com os recentes acontecimentos. Sua potência é fabulosa, sabem usar as novas tecnologias muito bem, manejam de maneira impressionante as lógicas de redes, mas não podem prescindir da experiência dos movimentos sociais já instituídos, como sindicatos, partidos, associações e setores ainda combativos dentro da universidade, precisam dialogar e trocar mais intensamente com eles, para efetivarem a potência em mais poder. E para não ficarem tão atônitos e perdidos quando a lógica de redes se mostrar exatamente como é: descentrada, diversa, escorregadia, complexa. Parece fácil lidar com ela, mas não é. A rua não é como o facebook, infelizmente, onde basta excluir quem te oprime, irrita, contesta, atrapalha, violenta etc. Na rua, vai ser preciso lidar com a multiplicidade, com as apropriações físicas e simbólicas, com a força bruta que a multidão facilita, com a flexibilidade... lidar com a não rigidez das ruas num é tarefa fácil, e acho que este é outro ganho deste processo, a compreensão de que é preciso aprender a lidar de outras formas com isso;
6) Também considero um ganho que parte considerável da sociedade entenda mais claramente o poder das redes sociais virtuais. Isso ajuda na luta. Mas como nos lembra a canção, “é preciso estar atento e forte”, porque a compreensão cada vez mais evidente desse aspecto também passa a ser preocupação e estratégias dos múltiplos sujeitos em cena, incluindo as direitas conservadoras, a mídia gorda, o Estado etc. Ou seja, trata-se de ferramenta ambígua, que precisa ser discutida também.
7) Considero um ganho o recuo na questão do aumento das passagens em vários locais do país. As mobilizações não eram só por vinte centavos, mas também eram. E nesse sentido é interessante perceber que os poderes instituídos se mostraram dispostos a negociar em alguma medida. Mas é preciso ficar muito atento para que este recuo não se mostre uma grande armadilha, com o repasse deste custo para outros setores de investimento social e, principalmente, para que ele não esvazie as outras pautas.
8) Pois também sabemos que não se trata só de vinte centavos. Então, é preciso que as lutas não esmoreçam. Requer mais discussão, compreensão, articulação, análise conjuntural e estrutural, enfim, não se resolve nada, sabemos todos, em um dia, uma semana, um mês. Também não podemos deixar que as instituições hegemônicas se apropriem da pauta e faturem com ela. Temos de continuar as disputas. Inclusive cobrarmos, a partir dos posicionamentos discursivos das autoridades constituídas, como a presidência da República, que de fato se institua o diálogo prometido e a ação para atender às demandas, evitando que se trate somente de pirotecnia discursiva para legitimar posições anteriores e forçar a aprovação de medidas de interesses contraditórios e escusos às custas de pessoas apanhando em seu nome nas ruas (sobre isso, falarei em outro post).
9) Neste sentido, essas disputas precisam ser pensadas em múltiplos ambientes. Nas ruas, com certeza. E nas esferas discursivas, com certeza. Mais do que nunca, precisamos ocupar as redes sociais, presenciais e virtuais. Precisamos provocar a discussão e lutar pelos sentidos nas grandes e pequenas mídias, nas escolas e universidades, na internet e em todos os lugares em que o discurso polifônico e dialógico está em disputa, porque mais do que nunca isso ficou claro: a luta é também discursiva, eu diria que fundamentalmente. E a percepção disso é, a meu ver, o mais significativo dos ganhos, dentre os que listei (embora caibam muitos outros), dos recentes episódios de mobilização social;
10) Ainda estamos em processo, por isso arriscamos algumas interpretações, mas sabemos que estamos em meio a algo complexo, confuso, múltiplo e deslizante, por vezes incontrolável. Bem, bem-vindos à vida, meus amigos. Ela é isso mesmo. Essa torrente, essa espuma, essa multidão. O sonho iluminista acreditou um dia que seria possível fechar o sentido e ordená-lo, mas sabemos que isso só é possível em práticas totalitárias. Os sentidos estão abertos e em disputa, não é fácil lidar com isso, mas volto a dizer: eis a vida. Por isso, não vejo fracassos nem vitórias, vejo movimentos e deslocamentos do sentido, perdas e ganhos, alguns empates, disputas permanentes. Portanto, sigamos na luta. Isso não é exatamente uma escolha, é o viver mesmo. Viver é lutar. Paramos de lutar, morremos.


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