Estamos em meio a um processo
complexo e deslizante, com muitos ângulos a serem considerados, por isso tenho
distribuído, partilhado e sugerido que a gente veja, leia, ouça, experiencie
muitas coisas e evite fechar conclusões. Muita coisa ainda vai acontecer, mas
gostaria de tecer aqui alguns pontos sobre as mobilizações sociais das últimas
semanas, fruto de algumas reflexões, sem maiores pretensões à verdade e
disposta ao diálogo:
1) As
mobilizações colocaram as questões políticas na agenda coletiva das
conversações, em meio a uma copa de futebol, que normalmente mobiliza o
imaginário geral. Isso, a meu ver, é um grande ganho;
2) Também
considero um ganho, ainda que em suas múltiplas discursividades e ambiguidades,
que as juventudes urbanas contemporâneas possam ter visibilidade e expressão. É
importante para todos nós que esses agentes possam se colocar, e é justo com
essa geração, muito oprimida pela sociedade de consumo, pela hedonização da
vida, pelo fardo da história que cobra dela que seja ativa e militante, pela
precarização das condições de vida e de trabalho, pelas ansiedades sintomáticas
da sociedade pós-moderna.
3) Outro
ganho, embora muito doloroso em todos os sentidos possíveis: explicitou
publicamente a truculência dessa polícia repressora e excludente, fazendo com
que parte considerável da população sentisse na pele o que sofrem
historicamente as classes oprimidas economicamente, em especial os moradores de
periferia, favelas, subúrbios e os jovens afro-descendentes, inclusive dando
visibilidade em escala mundial a imagens dessa violência bruta e vândala das
polícias brasileiras de forma geral. Talvez, nesse ponto, tenhamos, a partir de
agora, um esforço mais coletivo de luta em torno dessas ações opressivas contra
as quais temos que continuar permanentemente denunciando e nos manifestando,
independentemente de quem seja vitimado por essa truculência totalitária e
autorizada pelo Estado, a qual NÃO PODEMOS ACEITAR.
4) Mais
um ganho, que em parte resulta de algumas perdas: ficou claro, a meu ver, que os
movimentos sociais tradicionais precisam se recolocar, compreender esse
processo histórico e repensarem suas formas de atuação, pois sua ausência num
manifesto desse monte e repercussão é expressivo de um esvaziamento de seu
lugar na agenda coletiva. Precisam aprender a falar com as múltiplas
juventudes, suas formas de expressão, com as novas tecnologias, com a lógica
das redes. Precisam, urgentemente, se recolocarem no processo histórico, porque
não podemos abrir mão de sua experiência e habilidades, aprendendo com os
jovens, reconhecendo a necessidade de novas abordagens, rompendo com lugares confortáveis
de poder;
5) Os
novos movimentos sociais, especialmente de jovens de esquerda, também precisam
aprender com os recentes acontecimentos. Sua potência é fabulosa, sabem usar as
novas tecnologias muito bem, manejam de maneira impressionante as lógicas de
redes, mas não podem prescindir da experiência dos movimentos sociais já
instituídos, como sindicatos, partidos, associações e setores ainda combativos
dentro da universidade, precisam dialogar e trocar mais intensamente com eles,
para efetivarem a potência em mais poder. E para não ficarem tão atônitos e
perdidos quando a lógica de redes se mostrar exatamente como é: descentrada,
diversa, escorregadia, complexa. Parece fácil lidar com ela, mas não é. A rua
não é como o facebook, infelizmente, onde basta excluir quem te oprime, irrita,
contesta, atrapalha, violenta etc. Na rua, vai ser preciso lidar com a
multiplicidade, com as apropriações físicas e simbólicas, com a força bruta que
a multidão facilita, com a flexibilidade... lidar com a não rigidez das ruas
num é tarefa fácil, e acho que este é outro ganho deste processo, a compreensão
de que é preciso aprender a lidar de outras formas com isso;
6) Também
considero um ganho que parte considerável da sociedade entenda mais claramente
o poder das redes sociais virtuais. Isso ajuda na luta. Mas como nos lembra a
canção, “é preciso estar atento e forte”, porque a compreensão cada vez mais evidente
desse aspecto também passa a ser preocupação e estratégias dos múltiplos
sujeitos em cena, incluindo as direitas conservadoras, a mídia gorda, o Estado
etc. Ou seja, trata-se de ferramenta ambígua, que precisa ser discutida também.
7) Considero
um ganho o recuo na questão do aumento das passagens em vários locais do país.
As mobilizações não eram só por vinte centavos, mas também eram. E nesse
sentido é interessante perceber que os poderes instituídos se mostraram
dispostos a negociar em alguma medida. Mas é preciso ficar muito atento para
que este recuo não se mostre uma grande armadilha, com o repasse deste custo
para outros setores de investimento social e, principalmente, para que ele não
esvazie as outras pautas.
8) Pois
também sabemos que não se trata só de vinte centavos. Então, é preciso que as
lutas não esmoreçam. Requer mais discussão, compreensão, articulação, análise
conjuntural e estrutural, enfim, não se resolve nada, sabemos todos, em um dia,
uma semana, um mês. Também não podemos deixar que as instituições hegemônicas se
apropriem da pauta e faturem com ela. Temos de continuar as disputas. Inclusive
cobrarmos, a partir dos posicionamentos discursivos das autoridades
constituídas, como a presidência da República, que de fato se institua o
diálogo prometido e a ação para atender às demandas, evitando que se trate
somente de pirotecnia discursiva para legitimar posições anteriores e forçar a
aprovação de medidas de interesses contraditórios e escusos às custas de
pessoas apanhando em seu nome nas ruas (sobre isso, falarei em outro post).
9) Neste sentido, essas disputas precisam ser
pensadas em múltiplos ambientes. Nas ruas, com certeza. E nas esferas
discursivas, com certeza. Mais do que nunca, precisamos ocupar as redes
sociais, presenciais e virtuais. Precisamos provocar a discussão e lutar pelos
sentidos nas grandes e pequenas mídias, nas escolas e universidades, na
internet e em todos os lugares em que o discurso polifônico e dialógico está em
disputa, porque mais do que nunca isso ficou claro: a luta é também discursiva,
eu diria que fundamentalmente. E a percepção disso é, a meu ver, o mais
significativo dos ganhos, dentre os que listei (embora caibam muitos outros),
dos recentes episódios de mobilização social;
10) Ainda estamos em processo, por isso arriscamos
algumas interpretações, mas sabemos que estamos em meio a algo complexo,
confuso, múltiplo e deslizante, por vezes incontrolável. Bem, bem-vindos à
vida, meus amigos. Ela é isso mesmo. Essa torrente, essa espuma, essa multidão.
O sonho iluminista acreditou um dia que seria possível fechar o sentido e
ordená-lo, mas sabemos que isso só é possível em práticas totalitárias. Os
sentidos estão abertos e em disputa, não é fácil lidar com isso, mas volto a
dizer: eis a vida. Por isso, não vejo fracassos nem vitórias, vejo movimentos e
deslocamentos do sentido, perdas e ganhos, alguns empates, disputas
permanentes. Portanto, sigamos na luta. Isso não é exatamente uma escolha, é o
viver mesmo. Viver é lutar. Paramos de lutar, morremos.