Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Série nova. Chega de só falar bem do que leio, vejo etc. aqui nesse blog.

Pois bem, cheia de vontade fui ler a biografia do Antonio Maria, "Um homem chamado Maria", escrito pelo Joaquim Ferreira dos Santos (cujo estilo meio engraçadinho de escrever já tinha me dado uns engasgos em crônicas e no livro "1958", mas nada muito grave).

Mas agora ele se superou. Prefiro só reproduzir alguns trechos abaixo, sobre o bairro de Copacabana nos anos 50, me abster dos coments e deixar esse deleite pra vcs:

"Costuma-se dizer que o bairro naquela época era uma imensa vila habitada exclusivamente pela classe média. Os paraíbas e os suburbanos, nossos visigodos étnicos, já estavam por lá. Mas eram poucos, serviam apenas, como se fosse num filme da Metro, para dar cor exótica, tropical. O Rio perigoso estava bem definido: Lapa, Mangue, praça Mauá. Em Copacabana, podia-se andar de bonde com os destituídos e estes não se achavam agredidos nem com direito a qualquer rapinagem". (p.65).

Pensa que acabou???

"A classe média e os ricos, como se vê, eram maioria, mandavam. Havia espaço para curtir civilizadamente a solidão. (...) Escolhia-se: amar, sofrer, esquecer, se divertir. Mas tudo em paz. Sérgio Dourado e o Julio Bogoricin ainda não tinham enchido aquilo de quitinetes baratas, trazendo atrás o barulho dos carros, a poluição e o séquito de miseráveis despejados da sorte. A imprensa, por sua vez, ainda não havia ensinado o brasileiro a sonhar com o dia em que, conseguida a ascensão social, moraria ali" (p.65)

Já tava de bom, num tava? Mas não, a pessoa sempre pode se superar. Vamos adiante:

"O clima era de que todos se conheciam, se reconheciam, como privilegiados, e assim caminhavam, juntos e felizes, para as sessões do cinema Rian. Na bilheteria, acreditem, ainda não havia aquela criancinha remelenta te olhando comprar o ingresso e suspirosa de uma migalha qualquer de troco."(p.66).

Óbvio que parei de ler o livro nesse momento. Como pode isso, gente? Muita, mas muita vergonha alheia.

Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:






Li tanta coisa boa nestas férias que não resisto de comentar aqui, já que no twt num teria como dar conta do que quero dizer nos míseros 140 caracteres.

Pra começar, li três livros que de alguma forma estavam ligados ao tema da família. Em dois, esta era pensada em retrospectiva, através de jogos de memória, sobre os quais quero falar adiante. No terceiro, a família era projetada prospectivamente, rumo a um futuro sem data mas não muito distante. Nos dois primeiros, guerras concretas - a primeira e a segunda guerras mundiais - aniquilivam os sonhos daquelas pessoas e interferiam diretamente no rumo não só daquelas famílias mas das sociedades nas quais estavam inseridas. No terceiro, algo mais poderoso do que uma guerra - a hecatombe total, o fim de tudo, cinzas, trevas e caos -, ainda que não nomeado, ameaçava de modo mais claro ainda pôr fim não só aos sonhos e à família protagonista, mas à humanidade como um todo.

Mas chega de lead surpresa (hehe, homenagem às minhas queridas Lu e Tati). Estou falando especificamente de três livros: 1) Léxico familiar, de Natalia Ginzburg (sim, é a mãe do Carlo, amado historiador e muito usado em meus cursos de cultura popular), publicado pela Cosac & Naif em 2009; Alfred e Emily, da prêmio Nobel Doris Lessing (Cia das Letras, 2009); e, por fim, A Estrada (já transformado em filme), de Cormac McCarthy (o mesmo de "Onde os fracos não têm vez", também filme premiado), editado pela Alfaguara em 2007.

Em Léxico familiar, Ginzburg aborda a vida de sua família no período que antecede a Segunda Guerra Mundial e durante a mesma. Trata-se de uma linda construção de memória da vida privada, privilegiando principalmente modos de falar, de comer, de ver o mundo, de pensar. Através daqueles personagens humaníssimos, Natalia Ginzburg não só descreve sua própria família, mas um pouco a nossa (claro que estou tomando como referência a família ocidental etc. etc. etc.). E o fim daqueles valores e visões de mundo, transtornados pela Guerra, é também o marco da passagem de um estilo de vida mais simples para a modernização e aceleração do pós-guerra. No excelente posfácio (aliás, que edição cuidadosa da Cosac & Naif, parabéns!), Ettore Finazzi-Agró lembra que quando o livro foi lançado na Itália, em 1963, muitos o compararam, em termos da utilização de um enfoque sobre a família para descrever as mudanças dos tempos e as transformações sociais, com O Leopardo, de Tomás de Lampedusa. Eu, que sou muuuito fã do livro da Lampedusa (magistralmente filmado por Visconti, perfeito pra entender a transformação do estilo de vida principesco para o burguês), concordo plenamente. Livro lindo, esse Léxico familiar, valeu muito tê-lo lido.

A memória também está no centro do livro da Lessing. Mas aí o jogo de recordar e recriar é ainda mais poderoso. A autora resolve, quase aos 90 anos, acertar as contas com as dores familiares, e escreve um livro de perdão, lindíssimo. Com a seguinte estrutura: na segunda parte, ela conta o que de fato aconteceu com seus pais a partir da primeira guerra, quando seu pai é ferido em combate e perde uma das pernas, e ambos vão criar os filhos em uma fazenda na Rodésia, no sul da África do Sul, onde sua mãe sofre com uma intensa depressão que a afasta fortemente dos filhos. Trata-se de uma vida dura, triste, atravessada pelo trauma da guerra, que aniquila os sonhos e projetos daqueles dois. Pois bem, na primeira parte do livro, em uma demonstração de generosidade e reconhecimento à dor dos dois, Doris Lessing resolve recriar, de forma livre, a história de seus pais caso não tivesse havido a primeira guerra. Não vou contar aqui para não estragar. Mas comparar as duas histórias é triste e comovente. Um show de escrita, vou te falar.

Por fim, A Estrada, do McCarthy. Olha, desolador. Também muito bem escrito, já com cara de roteiro pra cinema, mas você lê num folêgo só. Pai e filho vão atravessando uns Estados Unidos sem vida, lutando pra sobreviver, temendo qualquer ser humano, tentando não sucumbir à animalização, só tendo um ao outro como amparo. O jogo da memória é também elemento central, principalmente no que se refere aos esquecimentos e embaçamentos que ela sempre provoca. Devorei esses três livros, realmente um achado.

Li mais dois: as deliciosas impressões de viagem de Maiakóvski quando esteve no México e nos EUA nos anos 20 (que, não por acaso, escolhi ler em NY), Minha Descoberta da América (Martins, 2007). Novamente, em jogo a questão da memória. E nesse caso, claramente a dimensão projetiva da memória, afinal, trata-se da visão de um russo sobre a américa capitalista. Muito divertido de ler, inclusive. E em inglês (num tive jeito, já que meus livros acabaram logo lá), A little history of the world, um divertido e por vezes surreal livro, mas muito legal, de E. H. Gombrich (sim, aquele da história da arte). Olha, só a história do surgimento desse livro, contada no prefácio por sua neta, já vale lê-lo. Num vou contar pra num estragar. Mas é tudo legal.

E estou lendo, pra terminar as férias, por empréstimo de meu irmão Luiz, Os chineses, de Claudia Trevisan (ed. Contexto, 2009). Aliás, a Contexto está lançando vários desses, tipo "Os franceses", "Os russos" etc. Pode parecer bobagem, coisa superficial, mas este dos chineses é ótimo. Bem escrito, interessante, cheio de dados legais, com fatos históricos mas também pitorescos, tô aprendendo pra caramba

Rentoso esse período, né, não? Agora, com as aulas começando, é só pedreira. Mas em janeiro tem mais. Hehe, quem me conhece sabe que vou dar escapulidas no decorrer do semestre. ;) Mas essa porção gorda e deliciosa, só nas férias mesmo. Peninha!