Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:

Tá rolando no BBB 14 uma história entre duas mulheres, Clara e Vanessa (apesar de homônima, num to falando daquela Clara ridícula que Manoel Carlos resolveu transformar na gay da novela das 8, essa só rende risadas). Não importa, para o que pretendo falar aqui, se é fake, forçado, só pra ganhar um milhão. Tanto faz. A questão é que em um reality show que já está na sua décima quarta edição e que, em várias, casas heteros fizeram sucesso e comoveram os fãs, pela primeira vez um casal gay está formado na casa e sensibilizando parte dos espectadores.
Não estava prestando muita atenção nesse BBB, porque a situação na vida "real" está tão tensa nesse verão de 2014 (somando o pico de calor com as loucuras, omissões e crimes de nossos governantes picaretas, com apoio de um jornalismo de dar vergonha, mais a violência, a pobreza, a desigualdade, os conflitos, olha, tá tenso!), mas outro dia meio sem querer reparei numa cena aleatória, que não era de pegação, e vi que a forma com que as duas se tratavam era meio de namoro. Fiquei surpresa e aí resolvi dar uma investigada. E o que fui descobrindo me colocou pra pensar.
Clara e Vanessa fazem enorme sucesso nas redes sociais, em especial nas comunidades GLBTS. As pessoas se comovem em parte com a coragem das duas em performatizarem cenas calientes entres duas mulheres para as câmeras e o público em geral, mas principalmente com a cumplicidade, os olhares, os carinhos, uma certa intimidade e principalmente essa cara de namoro que a relação das duas foi tomando, e que a edição mais curta, sem ser pay-per-view, não privilegia, destacando, evidentemente, só a pegação. Mas são muitos os vídeos (vou anexar dois nesse artigo) com montagens com as inúmeras cenas de carinho e intimidade entre as duas, algumas extremamente simples, mas que comovem como o diabo. E comovem principalmente porque é tão raro, quase invisível, essa representação do amor cotidiano entre pessoas do mesmo sexo na grande mídia, que quando aparece num tem como não emocionar. É a rotina de milhares de nós, que amamos cotidianamente, vivemos vidas comuns, com nossos amores/parceirXs/companheirXs/namoradXs... e que somos cotidianamente suprimidos do imaginário porque não somos representados, ou quando somos, somos de forma caricata, ridícula, irreal, surreal, preconceituosa, simplificadora etc.
Veja, não estou dizendo que BBB é um show de complexificação, evidentemente. Mas naquela rotina de 24h numa casa, em que as pessoas estão representando um self, que bom, mas que bom mesmo ver uma representação amorosa rotineira que não seja hetero, que abra espaço para que outros se vejam, se identifiquem, se sintam representados. As pessoas que vivem uma vida heteronormativa em geral, mesmo as mais bem intencionadas, NÃO TÊM ideia do que isso significa. E acabam não entendendo porque toca tanto, sensibiliza tanto, emociona tanto aos que vivem uma vida não representada midiaticamente naquilo de mais simples e fundamental para um ser humano, que é amar e ser amado.
Também não estou dizendo que não tem problemas na representação. Tem ideologia pra caramba. Só rola quando uma emissora poderosa quer, ou permite (como no caso Felix e Nico); a emissora edita para o público em geral somente o que "vende", então omite as cenas mais amorosas espontâneas e rotineiras, que são fundamentais para a construção da representação cotidiana do self; as representações que causam mais comoção repetem modelo de amor romântico ocidental e e família burguesa; BBB e outros produtos que se colocam como realidade são ficcionais e editados ideologicamente (o que não é, né, minha gente? porque só com muita cegueira, estupidez ou cinismo pra acreditar em objetividade, neutralidade e discurso que retrata a "verdade" nessa altura do campeonato); enfim, os problemas não sumiram.
Mas volto a insistir na importância da luta por representação. Volto a insistir que parte muito bem intencionada da militância política não tem ideia do que isso significa. Como é importante. Sugiro uma netnografia entre as muitas páginas e comunidades de apoio ao casal Clanessa pra entender o impacto que isso tem entre quem não se sente representado. Talvez isso indique que são muitas as frentes de luta, num dá pra abandonar nenhuma, muito menos a que envolve representações e ideologias acerca das subjetividades. E entender que para combater a crescente violência contra os gays em nossa sociedade é preciso atuar em muitos fronts, sem desprezar nenhum, incluindo o campo do direito, as manifestações, o ativismo político no sentido estrito e o campo comunicacional e suas múltiplas janelas, disputando o direito de significar, de falar, de se representar e se sentir representado, de não ser invisível, de ser mais do mesmo ainda que diferente. Um viva para Clanessa!



Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:

Não, não vai acabar diretamente com a homofobia no Brasil.
Sim, mas foi um passo importante na discussão que está sendo travada sobre o tema, porque a emissora de maior visibilidade do país bancou essa cena polêmica.
Sim, a Globo quer faturar audiência.
Não, não redime a Globo de todos os seus crimes ideológicos.
Sim, a Globo conseguiu a proeza de ser mais pra frente do que o governo Dilma, essa vergonha em políticas de combate à homofobia.
Não, não foi o primeiro beijo gay em novelas brasileiras.
Sim, mas foi a primeira vez que o beijo final, destinado ao casal principal, foi um beijo entre dois homens.
Sim, é super conservador esse negócio de só existir felicidade via casamento/família etc.
Sim, mas no momento atual é muito importante e pertinente mostrar, como cena final de uma novela, uma família de dois homens e seus filhos, principalmente com as discussões que têm sido travadas na sociedade brasileira sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Não, não foi um beijo caliente.
Sim, foi um beijo amoroso entre duas pessoas que se amam.
Não, não apaga tudo o que o personagem fez de maldade durante a trama toda.
Sim, W. Carrasco acertou a mão neste final e os atores (Solano, Fragoso e Fagundes) deram um show.
Não, não redime a canastrice da novela e as cenas ridículas que Carrasco nos obrigou a aturar.
Sim, foi o coroamento de uma atuação magistral, a de Matheus Solano como Felix.
Sim, o amor muitas vezes redime e promove o perdão. O amor muitas vezes cura.
Sim, foi uma cena referência ao final de Morte em Veneza.
Sim, terminou sem o tradicional "fim" após a cena final. Vida que segue...
Não, não gerou uma aceitação unânime.
Sim, mexeu com o imaginário nacional, colocou o tema na pauta do fim de semana, gerou reações de torcida como se fosse final de copa do mundo.
Sim, foi um #chupafeliciano e #chupabolsonaro e #chupamiriamrios e #chupamalafaia que deu gosto de ver.
Sim, era só uma novela.
Não, não era só uma novela. Era um importante lugar de representação, de disputa cultural, discursiva, a cena final de uma novela das oito, em que tradicionalmente o último beijo cabe ao casal principal da trama, e dessa vez esse casal foi REPRESENTADO por dois homens.
Não, uma novela das oito da rede Globo não é, no Brasil, só uma novela. E tem que ser muito cínico pra fingir que não se sabe disso.
Sim, ainda há muito para ser feito na "vida real".
Mas, sim, sim, foi muuuuuito legal ver parte significativa da minha TL no Facebook e no twitter emocionada, comemorando, festejando. Porque todo mundo sabe o que tava em jogo ali. Quem finge não saber se faz de besta, por ignorância, conveniência ou cinismo.
Sim, a cena foi linda pra caramba, a luta por representação foi linda, mas bonito mesmo, de emocionar, foi ver a alegria de todos os que são diariamente massacrados pela ausência de representação ao lado da ausência de princípios básicos de igualdade que, pelo menos por alguns breves segundos, se sentiram minimamente representados.
Se as pessoas não conseguem ver o passo que essa cena significou para a auto-estima e para a luta em torno da representação, com todos os problemas que isso obviamente ainda carrega, sinto muitíssimo, mas talvez esteja faltando um pôr-do-sol e a mão de um ente amado para ajudar a curar a cegueira...