Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Quando mais jovem, sonhava muito que eu voava. Adorava sonhar isso. Quando comecei a terapia há quatro anos, voltei a sonhar coisas que tinham sumido dos meus sonos, como o vento batendo na minha cara andando de bicicleta, um passe perfeito jogando futebol, a sensação de correr... mas voar nunca mais tinha sonhado... tinha até me conformado, ainda que meio triste.

No entanto, ontem sonhei um sonho lindo e significativo. Eu estava em um carro, dentro de um contexto bem confuso, daqueles de sonho, e eu corria muito com o carro. De repente tinha um engarrafamento intenso na minha frente e eu não queria parar, aí eu não diminuía e o carro voava sobre aquele trânsito todo. Aí eu ficava maravilhada vendo tudo lá de cima e de repente via, ao lado da janela do carro, um passarinho azul brilhante, pequeno e lindo. Ele voava livre e eu olhei admirada. Ele pousou na minha mão e, puff, se desintegrou, juntamente com o carro. Aí quem voava era eu. Livre, feliz, como nos meus sonhos dos vinte anos. Aí eu ia voando até onde estava meu amor, que estava me esperando pra pegá-la de carro, e dizia: ó, eu posso voar, e vou te levar comigo. E aí voávamos juntas.

Acordei muito emocionada hoje com esse sonho. Voltei a voar nos sonhos e sei que isso tem muito a ver com os acontecimentos das últimas semanas.

Queria agradecer a todos os pássaros azuis que me ajudaram a voar de novo, com sua esperança, vontade de mudar o mundo, atitude e potência. Em especial, mesmo correndo o risco de esquecer alguns, queria agradecer a uns pássaros azuis em especial, porque nos últimos tempos eles têm estado muito presentes em minhas leituras de mundo em sala de aula e nas conversas cotidianas: meus queridos Dessa, Gyssele, Ioná, David, Clara, Bruno Rocha, Lia Ribeiro, Paulo, Mari Gomes, Bruno Thebaldi, Erica Sarmet, Alexandre Santos e outros que me fazem pensar, lutar e acreditar no sonho.


Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Sobre o pronunciamento da presidente Dilma, achei previsível. Se declarou favorável às manifestações democráticas e pacíficas. Prometeu reprimir o vandalismo para restabelecer a ordem. Se mostrou aberta ao diálogo. Prometeu pacto social. Sugeriu medidas para resolver alguns problemas. Lembrou da importância de realizarmos uma copa ordeira e sem incomodar os visitantes. Enfim, falou o que um chefe de Estado deveria falar para acalmar a nação em um momento complexo e perigoso. Nesse ponto, tudo bem, tudo certo. Era isso mesmo que precisava ser feito. Ponto para o governo.
Mas queria tecer algumas considerações:
a) Acho lamentável que o governo incorpore os termos “vândalos” e “baderneiros” constituídos estrategicamente pela mídia hegemônica sem prometer investigação sobre quem seriam esses sujeitos etc. Acho isso perigoso em termos de fechamento de sentido e vergonhoso para um Partido com a história política do PT;
b) Acho lamentável falar-se em democracia etc. e não se colocar uma só palavra sobre a ação das polícias. Isso é uma omissão calculada e imperdoável, aí não só para uma presidente e um partido com a história de ambos, mas para qualquer autoridade constituída. O que as polícias estão fazendo nas ruas, como demonstram MILHARES de depoimentos e centenas de imagens, é crime. E quando uma autoridade instituída se cala sobre uma ação criminosa perpetrada pelo Estado ela é tão criminosa quanto. Já tinha falado isso antes, em episódios como Pinheirinhos etc. Para mim, sinceramente, isso é imperdoável. Não sei vocês, mas eu nunca esquecerei esse silêncio;
c) Militei muito pelo PT. Votei nele continuamente. Inclusive em todas as eleições do Lula e na da Dilma, por quem inclusive fiz campanha aqui. Então me sinto totalmente livre para falar, porque não sou anti petista, anti lula etc. Também não sou simplificadora, sei que é incomparável o quanto o país avançou em alguns pontos em relação ao governo FHC, e não tenho dúvida que o PSDB é MUITO PIOR para o país. Vejo ganhos sociais óbvios para a democracia no bolsa família, na política de cotas,  na área das políticas culturais (embora mais nos governos lula), na ascensão econômica de alguns setores da população etc. Mas isso não me torna cega e impossibilitada de criticar o que vejo de problemas no governo do PT. Acho que se trata de um governo contraditório, com alianças políticas imperdoáveis principalmente por sua história e pelo quanto elas são perniciosas ao país (Cabral, Paes, Sarney, Collor, Renan etc.), com ações totalitárias disfarçadas de democráticas (vide o que aconteceu na greve dos professores no ano passado), que tem servido fortemente ao grande capital, que beneficia banqueiros, mega empresários, grande corporações midiáticas e econômicas, que abandonou sua juventude militante, que tem sido omissa em aspectos imperdoáveis, como a violência policial, a falta de políticas públicas para resolver de fato as questões de saúde e educação, combate à corrupção e outros pontos complexos, como o crescimento da influência de setores particularistas e sectários como bancada religiosa, bancada ruralista etc. nas decisões políticas. Sim, neste sentido vejo que o PT trouxe ganhos para o país, mas também retrocessos e permanências. E quero ter o direito de poder falar sobre isso, sem maniqueísmos. E quero ter o direito de dizer que como militante deste Partido me decepcionei profundamente com ele. Mas eu era mais jovem, agora sou mais cascuda e isso também tem ganhos e perdas, sou mais cética e cínica, o que me permite análises menos apaixonadas, mas para compensar mais tristes. É isso, entendo politicamente boa parte das ações do PT, por vezes até as defendo porque entendo melhor as regras do jogo, mas considero algumas imperdoáveis (a omissão quanto à violência policial é uma delas) e me dou o direito de expressar minha tristeza com essa desilusão. Me sinto muito triste porque no poder o PT não foi o partido que alimentou meus sonhos de juventude.
d) Por fim, mesmo com o parágrafo anterior, sei que política é isso mesmo. Tem movimentos, concessões e negociações complexas e escorregadias. Assim sendo, voltarei à fala da Dilma ontem. Acho que o PT, mestre histórico pela experiência acumulada nos movimentos sociais e nessa década de poder instituído, sabe como poucos partidos faturar em cima da pauta dos movimentos sociais. Acho que o pronunciamento de ontem mostra isso claramente. Questões como pacto social, plano de mobilidade urbana, projeto dos cem por cento do petróleo para educação, proposta de trazer médicos cubanos para o país, os gastos com a copa etc. já estavam em jogo, despertando polêmicas justas porque são contraditórios, mostram muitas vezes um empenho de agradar o capital, em outras se mostram de fato projetos para melhorar condições sociais. Enfim, projetos complexos, que precisariam de maior debate social. Só para citar um exemplo: os cem por cento para a educação. Que educação? A pública, que continua sucateada apesar de discursos e programas como o REUNI? Ou a privada, que tem sido muuuuuito privilegiada nos últimos tempos? E como ficam os municípios que sofrem diretamente o impacto da exploração do petróleo? Não serão indenizados para que possam tentar mitigar esse impacto?  Então, precisamos discutir isso, como muitos têm sinalizado. Agora, quando a presidente coloca esta fala em um discurso apaziguador, em meio a uma tensão social ansiosa e aparentemente explosiva, me parece uma clara estratégia de faturar em cima dos acontecimentos, forçando uma aprovação emocional à proposta a partir do clamor popular. PT é uma raposa velha no campo político, sabe como poucos faturar em cima de episódios de forte impacto midiático. Repito: assim como na greve dos docentes universitários do ano passado, o partido silenciou primeiro, depois deslocou a pauta, contou com a expressiva fala da grande mídia fechando os sentidos e conquistando a opinião pública, prometeu diálogo, fingiu dialogar e nunca dialogou e depois aprovou o que quis. Rolo compressor sim, às custas de luta nas ruas/universidades, mídia hegemônica a favor e artimanhas políticas e discursivas. Não considero isso uma novidade nem uma surpresa, acho que faz parte do jogo político e considero que o PT é um mestre nesse tipo de jogo. Por isso disse que era previsível. Sobre essa parte nem me decepcionei nem fiquei triste, acho que é isso mesmo, faz parte da luta política faturar em cima dos episódios. E temos de reconhecer: esses caras são bons nisso.
e) Além disso, é preciso também estar atento a artimanhas que poderiam favorecer ações golpistas. Isso, obviamente, não podemos tolerar. Neste sentido, fechamos com o PT, como fecharíamos, democraticamente, com partidos eleitos dentro do jogo democrático. Mas isso também não nos impede de perceber que esse tipo de ameaça e pressão também é ambígua, porque se por um lado nos obriga a rechaçar ações e atitudes golpistas, também permitem que o partido forcem uma aprovação temerosa a suas propostas, visando fortalecer o poder instituído. Neste sentido, o medo de golpe que ameaça também permite que se fature sobre ele.

f) Enfim, agora bora cobrar as promessas etc. Mas elas não são novas, né? Já eram de campanha etc. Mas nem por isso acho que as mobilizações não têm ganhos. Sobre isso, falei no post anterior, e tá tudo no meu blog pra quem quiser acompanhar meu argumento todo.
Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Estamos em meio a um processo complexo e deslizante, com muitos ângulos a serem considerados, por isso tenho distribuído, partilhado e sugerido que a gente veja, leia, ouça, experiencie muitas coisas e evite fechar conclusões. Muita coisa ainda vai acontecer, mas gostaria de tecer aqui alguns pontos sobre as mobilizações sociais das últimas semanas, fruto de algumas reflexões, sem maiores pretensões à verdade e disposta ao diálogo:
1) As mobilizações colocaram as questões políticas na agenda coletiva das conversações, em meio a uma copa de futebol, que normalmente mobiliza o imaginário geral. Isso, a meu ver, é um grande ganho;
2) Também considero um ganho, ainda que em suas múltiplas discursividades e ambiguidades, que as juventudes urbanas contemporâneas possam ter visibilidade e expressão. É importante para todos nós que esses agentes possam se colocar, e é justo com essa geração, muito oprimida pela sociedade de consumo, pela hedonização da vida, pelo fardo da história que cobra dela que seja ativa e militante, pela precarização das condições de vida e de trabalho, pelas ansiedades sintomáticas da sociedade pós-moderna.
3) Outro ganho, embora muito doloroso em todos os sentidos possíveis: explicitou publicamente a truculência dessa polícia repressora e excludente, fazendo com que parte considerável da população sentisse na pele o que sofrem historicamente as classes oprimidas economicamente, em especial os moradores de periferia, favelas, subúrbios e os jovens afro-descendentes, inclusive dando visibilidade em escala mundial a imagens dessa violência bruta e vândala das polícias brasileiras de forma geral. Talvez, nesse ponto, tenhamos, a partir de agora, um esforço mais coletivo de luta em torno dessas ações opressivas contra as quais temos que continuar permanentemente denunciando e nos manifestando, independentemente de quem seja vitimado por essa truculência totalitária e autorizada pelo Estado, a qual NÃO PODEMOS ACEITAR.
4) Mais um ganho, que em parte resulta de algumas perdas: ficou claro, a meu ver, que os movimentos sociais tradicionais precisam se recolocar, compreender esse processo histórico e repensarem suas formas de atuação, pois sua ausência num manifesto desse monte e repercussão é expressivo de um esvaziamento de seu lugar na agenda coletiva. Precisam aprender a falar com as múltiplas juventudes, suas formas de expressão, com as novas tecnologias, com a lógica das redes. Precisam, urgentemente, se recolocarem no processo histórico, porque não podemos abrir mão de sua experiência e habilidades, aprendendo com os jovens, reconhecendo a necessidade de novas abordagens, rompendo com lugares confortáveis de poder;
5)  Os novos movimentos sociais, especialmente de jovens de esquerda, também precisam aprender com os recentes acontecimentos. Sua potência é fabulosa, sabem usar as novas tecnologias muito bem, manejam de maneira impressionante as lógicas de redes, mas não podem prescindir da experiência dos movimentos sociais já instituídos, como sindicatos, partidos, associações e setores ainda combativos dentro da universidade, precisam dialogar e trocar mais intensamente com eles, para efetivarem a potência em mais poder. E para não ficarem tão atônitos e perdidos quando a lógica de redes se mostrar exatamente como é: descentrada, diversa, escorregadia, complexa. Parece fácil lidar com ela, mas não é. A rua não é como o facebook, infelizmente, onde basta excluir quem te oprime, irrita, contesta, atrapalha, violenta etc. Na rua, vai ser preciso lidar com a multiplicidade, com as apropriações físicas e simbólicas, com a força bruta que a multidão facilita, com a flexibilidade... lidar com a não rigidez das ruas num é tarefa fácil, e acho que este é outro ganho deste processo, a compreensão de que é preciso aprender a lidar de outras formas com isso;
6) Também considero um ganho que parte considerável da sociedade entenda mais claramente o poder das redes sociais virtuais. Isso ajuda na luta. Mas como nos lembra a canção, “é preciso estar atento e forte”, porque a compreensão cada vez mais evidente desse aspecto também passa a ser preocupação e estratégias dos múltiplos sujeitos em cena, incluindo as direitas conservadoras, a mídia gorda, o Estado etc. Ou seja, trata-se de ferramenta ambígua, que precisa ser discutida também.
7) Considero um ganho o recuo na questão do aumento das passagens em vários locais do país. As mobilizações não eram só por vinte centavos, mas também eram. E nesse sentido é interessante perceber que os poderes instituídos se mostraram dispostos a negociar em alguma medida. Mas é preciso ficar muito atento para que este recuo não se mostre uma grande armadilha, com o repasse deste custo para outros setores de investimento social e, principalmente, para que ele não esvazie as outras pautas.
8) Pois também sabemos que não se trata só de vinte centavos. Então, é preciso que as lutas não esmoreçam. Requer mais discussão, compreensão, articulação, análise conjuntural e estrutural, enfim, não se resolve nada, sabemos todos, em um dia, uma semana, um mês. Também não podemos deixar que as instituições hegemônicas se apropriem da pauta e faturem com ela. Temos de continuar as disputas. Inclusive cobrarmos, a partir dos posicionamentos discursivos das autoridades constituídas, como a presidência da República, que de fato se institua o diálogo prometido e a ação para atender às demandas, evitando que se trate somente de pirotecnia discursiva para legitimar posições anteriores e forçar a aprovação de medidas de interesses contraditórios e escusos às custas de pessoas apanhando em seu nome nas ruas (sobre isso, falarei em outro post).
9) Neste sentido, essas disputas precisam ser pensadas em múltiplos ambientes. Nas ruas, com certeza. E nas esferas discursivas, com certeza. Mais do que nunca, precisamos ocupar as redes sociais, presenciais e virtuais. Precisamos provocar a discussão e lutar pelos sentidos nas grandes e pequenas mídias, nas escolas e universidades, na internet e em todos os lugares em que o discurso polifônico e dialógico está em disputa, porque mais do que nunca isso ficou claro: a luta é também discursiva, eu diria que fundamentalmente. E a percepção disso é, a meu ver, o mais significativo dos ganhos, dentre os que listei (embora caibam muitos outros), dos recentes episódios de mobilização social;
10) Ainda estamos em processo, por isso arriscamos algumas interpretações, mas sabemos que estamos em meio a algo complexo, confuso, múltiplo e deslizante, por vezes incontrolável. Bem, bem-vindos à vida, meus amigos. Ela é isso mesmo. Essa torrente, essa espuma, essa multidão. O sonho iluminista acreditou um dia que seria possível fechar o sentido e ordená-lo, mas sabemos que isso só é possível em práticas totalitárias. Os sentidos estão abertos e em disputa, não é fácil lidar com isso, mas volto a dizer: eis a vida. Por isso, não vejo fracassos nem vitórias, vejo movimentos e deslocamentos do sentido, perdas e ganhos, alguns empates, disputas permanentes. Portanto, sigamos na luta. Isso não é exatamente uma escolha, é o viver mesmo. Viver é lutar. Paramos de lutar, morremos.