Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Cena 1 - meados de 2014: mesa de bar em niter, com orientanda discutindo rumo da tese e coisas da vida. Cerveja e coca-cola rolando, mesa do lado de fora prum cigarrinho. Uma hora resolvo ir ao banheiro. Bar já estava fechando, porta de ferro abaixada, portinhola pra atravessar. Vou com um pouco de dificuldade, dou uma leve tropeçada, nada muito dramático, ok. Na volta, quando vou transpor a mesma portinhola, a pessoa rapidamente se levanta, sem falar nada, fica em pé ao lado da porta e me dá a mão pra me ajudar a atravessar. Não faz qualquer comentário, não pergunta se quero ou preciso, só se antecipa e me ajuda. Estava lá, de boa, bebendo, mas se levantou para me auxiliar. Agradeço. Sentemos e seguimos com a conversa.

Cena 2 - segundo semestre de 2014: passo o semestre com problema chato de dor no ombro, causado por uma artrose, que me impede vários movimentos. Por vezes me esqueço pela força do hábito e repito os mesmos, pego peso, sinto dor. No decorrer do semestre todo, um aluno e duas alunas, de períodos e turmas diferentes, individualmente e sem combinar, sempre ficam conversando comigo no fim da aula, muitas vezes com outros alunos em volta. E sempre, sempre, sem falarem nada, pegam minha pasta ou mochila ou bolsa e carregam pra mim, até a saída do prédio e até o carro. Não me perguntam se preciso, não se oferecem, não fazem qualquer comentário sobre o problema do meu ombro. Só se antecipam e me protegem. Podiam ir embora antes, não têm qualquer obrigação de fazer isso, mas ficam até o final. Agradeço. Mas sem muito estardalhaço.

Cena 3 - dezembro de 2014: banca de defesa de TCC em cinema. Não conheço muito a formanda, só de vista e de alguns encontros fortuitos, nunca foi minha aluna. Calor forte, ar condicionado ligado e também o ventilador. A aluna está apresentando seu tema, na sala estamos eu, o orientador e outro membro da banca. Enquanto ela fala, eu, que estou sentada embaixo do ventilador, por um momento sinto mais frio e discretamente me encolho, nada muito grave, portanto, faço um gesto contido. Não falo nada para não atrapalhar a apresentação. A aluna, então, sem interromper o que está falando, se levanta e desliga o ventilador. Não fala nada, não pergunta se estou com frio. Percebe o pequeno gesto e se antecipa. O ventilador estava longe dela, não a incomodava em nada, mas procurou o meu bem-estar. Não agradeço para não atrapalhar.

Cena 4 - fevereiro de 2015: churrasco vegetariano na casa de amigas. Noite divertida, todas rindo e conversando. Uma das anfitriãs, que conheci naquele dia, está sentada na mesa redonda do lado oposto ao meu. Muitas estão fumando. Eu, inclusive. O cinzeiro está do lado dela, longe de mim. Alguém está contando uma história divertida, não quero atrapalhar, me esforço um pouco pra bater a cinza, nada muito grave, dá pra fazer isso, só preciso me esticar um pouco, mas não falo nada. A anfitriã, assim como eu e as demais, está atenta ao que está sendo falado, mas discretamente, sem falar nada e sem me perguntar se gostaria ou preciso, chega o cinzeiro um pouco mais pro centro da mesa. A cena se repete mais uma vez, melhorou bem mas ainda está um pouco longe, não preciso me esticar tanto mas preciso me afastar do encosto da cadeira, mas o gesto é bem mais discreto. Mais uma vez, sem falar nada, ainda olhando para quem fala, a anfitriã move mais uma vez o cinzeiro, o coloca no centro, pra que todos possam usá-lo igualmente, eu e ela inclusive, embora para ela, que estava fumando também, seria muito mais cômodo manter o cinzeiro perto de si. Agradeço ao final.

Quatro casos. O que unifica essas pessoas e essas histórias? Em primeiro lugar, as gentilezas pequenas, mas que causaram um bem enorme; em segundo, a presteza no préstimo, sem necessidade de perguntar se era preciso ou esperar agradecimento; em terceiro lugar, o olhar para o outro, a percepção da demanda do outro, a preocupação em ajudar o outro, a atenção para com o gesto do outro; em quarto, o silêncio do ato, que se exprime só no gesto e não requer nem justificativas nem valorizações; e por fim, o fato dos autores das façanhas acima descritas não terem a mínima ideia que me marcaram tanto, que vira e mexe lembro desses pequenos flashes de afeto e o quanto me senti agradecida pelas suas ações. To agradecendo agora e pedindo: não percam esse olhar generoso e amoroso para o mundo. Ele cria atos simples de humanidade, como os que descrevi acima, que comovem como o diabo, como já dizia o poeta.


PS: se os heróis dessas proezas plenas de gentileza me autorizarem, coloco seus nomes neste texto. ;) Eles autorizaram, então lá vai: obrigada, Marina Dutra; Luiza Gomes; Raphael Azevedo; Tassiana Benamor; Juliana Bravo e Susana Amaral!