Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Santiago, capital do Chile, que conheci recentemente, tem várias características encantadoras. Os parques, em primeiro lugar. Belos, arborizados, limpos, agradáveis, aconchegantes aos passantes. Bancos pelas ruas, mobiliário urbano que nos convida a sentar e ocupar. Praças limpas, monumentos grandiosos e bem conservados. Um metrô limpo e muuuuito eficiente, uma beleza. Restaurantes e comida em geral excelentes.

Mas tem coisas bem contraditórias, também. Aquela poluição fazendo a cidade estar envolta em uma permanente nuvem que nos impede de ver o horizonte e a cordilheira. A evidente marca da distinção de classe, fazendo com que as pessoas de traços indígenas estejam praticamente destinadas aos empregos informais ou menos qualificados. Uma mistura de ar europeu na classe média com uma cafonice provinciana, fazendo com que muitas vezes os chilenos sejam discretos e indiscretos ao mesmo tempo, elegantes e rudes ao mesmo tempo, refinados e grosseiros ao mesmo tempo. E, principalmente, a ausência de cor. Fiquei pasma, realmente impressionada com a ausência das cores. Tudo muito cinza e marrom. As pessoas se vestindo basicamente de cores austeras, em especial o preto. Tudo muito preto, cinza, escuro. Aí vc chega nas lojas de comércio popular, de artesanato local, tudo colorido. Mas isso não está no dia-a-dia, na vida comum, na cara da cidade. Isso me impressionou e entristeceu muito. Imagino como deve ter sido lindo e rico em colores, misturas, culturas aquele Chile antes de ser tomado pela melancolia e pela tentativa de imitar a Europa no processo colonizador.

Durante meus dias em Santiago, reli Meu país inventado, livro de memórias da Isabel Allende (RJ, Bertrand Brasil, 2009) sobre sua terra que não é natal (nasceu em Lima), mas que é como se fosse, e de onde precisou partir após o golpe. Foi bom ter a cia da escritora nesse meu olhar sobre o Chile, ela me ajudou a decifrar algumas coisas. A busca do padrão europeu, por exemplo. Ela nos conta que a classe média/alta chilena tem obsessão pela Inglaterra, então, faz parte de um estilo apropriado parecer inglês. Isso explica muita coisa. Ao mesmo tempo, ela nos conta que a cordilheira criou um afastamento do mundo que faz do santiaguense um sujeito meio desconfiado, provinciano e muito fechado. Também fez sentido. E, principalmente, me fez bem a forma como a autora constrói suas memórias, como uma narrativa sem pretensão à verdade, a história de um "país inventado", como ela nos explica no trecho abaixo:

"Construí a ideia do meu país como um quebra-cabeças, selecionando as peças ajustáveis ao meu desenho e ignorando as demais. Meu Chile é poético e pobretão; por isso descarto as evidências dessa sociedade moderna e materialista, para a qual o valor das pessoas é medido pela riqueza bem ou mal adquirida, e insisto em ver por toda parte os sinais de meu país de antigamente. Criei também uma versão de mim mesma sem nacionalidade ou, melhor, como múltiplas nacionalidades. Não pertenço a um território, mas a vários, ou talvez só pertença ao âmbito da ficção que escrevo. Não pretendo saber o quanto de minha memória são fatos verdadeiros e o quanto foi inventado por mim, pois não me cabe a obrigação de traçar a linha entre uma coisa e a outra. Andrea, minha neta, escreveu uma composição escolar na qual declara: "Gosto da imaginação da minha avó". Perguntei-lhe a que se referia e ela explicou sem vacilar: "Você se lembra das coisas que nunca aconteceram". Mas não fazemos todos o mesmo? Dizem que o processo cerebral de imaginar e o de recordar parecem tanto que são quase inseparáveis. Quem pode definir a realidade? Tudo não é subjetivo?" (ALLENDE, 2009:216).

Conhecer o Chile sempre foi um sonho, pela história que precede meu nascimento e que contei em outro post. Confesso que foi um pouco decepcionante o Chile com que me deparei, nesta experiência de uma semana em Santiago em outubro de 2013. Assim, vou seguir as dicas da Allende e inventar o meu Chile, com seus parques, as memórias de minha mãe, o Jardim de Mariscos do Mercado Central, todas as pessoas simpáticas do povo que me atenderam nos lugares mais populares, em especial o garçom Hernán, do Mercado, que declarou para meu amor, quando eu estava ausente, que queria me dizer uma coisa, me dizer que eu "tinha um coração muito grande, que era especial", depois de termos passado uma tarde de cantorias, provas gastronômicas e traduções de parte a parte. Esse é o Chile que imaginei, alegre, fraterno, aconchegante, cantante e generoso. E no meu Chile há de haver muitas cores, muitas.



Como diz a letra da linda canção "Latinoamérica", do grupo Calle 13, que meus queridos Kleber Mendonça  e Leonardo Nascimento me apresentaram na volta do Chile: "Tú no puedes comprar mis colores/ Tú no puedes comprar mi alegría/ Tu no puedes comprar mis dolores"... Quero te encontrar, Chile querido, América Latina querida, em outras vozes, que não de sua classe média europeizada, triste, com suas roupas escuras e sua ausência de cores e espontaneidade. Por isso, voltei a ler e ouvir Galeano, Neruda, Allende, Violeta Parra, Victor Jara e outros mais, para que sejam meus companheiros de imaginação. Viva meu Chile inventado e colorido!