Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
gente, prometi escrever com calma depois dos desabafos feitos no nosso grupo de discussão da disciplina "Mídia e Representação de Favela" no decorrer dessa semana triste em que DG foi assassinado, mas fui engolida pelos múltiplos afazeres.

Mas não esqueci e queria dizer pra vcs que pensar o mundo num é fácil, especialmente quando as coisas são tão fortes e tristes. Dá vontade de desistir, muitas vezes, de se alienar, de deixar pra lá. Como diz Hermann Hesse num poema, que já compartilhei em mensagens anteriores, "de noite, às vezes, não consigo dormir. A vida dói". E também sentimos culpa, especialmente culpa de classe, porque a vida dá privilégios a alguns e não a outros, e não nos sentimos de fato fazendo algo pelo outro, para diminuir as injustiças, para sairmos de nossa zona de conforto.

Quando penso em vcs, que se inscrevem nas disciplinas que ofereço, sempre fico comovida e preocupada. Porque ninguém se inscreve em "Midia e mobilização social" ou "Midia e representação de favela" por acaso, são optativas, todos sabem qual vai ser a pegada dessas disciplinas. Então sei que quem se inscreve nessas disciplinas, em geral, já tem um olhar sensível, uma militância, uma preocupação para com o outro, uma vontade de compreender e transformar o mundo. E os acontecimentos vão mexendo com a gente, num é fácil lidar com isso, vou citar outra poeta pra me ajudar a significar aqui: "Tortura do pensar, triste lamento. Quem me dera calar a vossa voz!" (Florbela Espanca).

Mas nem sempre se consegue, as vozes, os lamentos, as dores do mundo nos invadem, comovem, dilaceram. Não existe antídoto pra isso. No máximo, repetir o mantra grammsciano dia após dia: é preciso conjugar o pessimismo do pensar com o otimismo da vontade. Vontade de lutar, de mudar o mundo, de agir, de transformar. Mas mesmo repetindo o mantra, muitas, muitas vezes, tem momentos em que o absurdo é tão forte, em que o horror é tão impressionante, que fica difícil representar, expressar, significar.

Porque existem dimensões do horror que não conseguimos narrar. São demais pra nós. Isso fica muito patente no fim do magistral romance "O coração das trevas", de Conrad (quem não leu, LEIA! É uma ordem!), quando Marlow, o narrador, vai encontrar a noiva do coronel Kurtz, aquele que enlouqueceu na selva e só conseguiu dizer, em suas palavras finais: "O horror! O horror!". Aqui está a transcrição da cena das palavras finais de Kurtz, que ele profere para Marlow:

"Eu nunca tinha visto, nem espero tornar a ver, coisa parecida com a transformação que se dera nos seus traços. Não, emocionado eu não estava. Estava fascinado. Como se um véu se tivesse rasgado. No marfim daquele rosto vi uma expressão de orgulho sombrio, indomável poder, de abjecto terror - de um desespero intenso e sem esperança. Naquele supremo instante, de integral conhecimento, estaria ele a reviver a vida em todo o pormenor, com os seus desejos, tentações e renúncias? Deu um grito sussurrado a uma imagem qualquer, a uma visão qualquer - gritou duas vezes, um grito que não passava de sopro... "O horror! O horror!"".

Pois no encontro com a noiva de Kurtz, acontece essa cena magistral, que agora transcrevo pra vcs, quando a noiva indaga para Marlow quais teriam sido as últimas palavras de seu noivo:

- "Mesmo até ao fim" - respondi com voz trémula. - "Ouvi-Lhe as últimas palavras..." - Calei-me apavorado.
- "Repita-as" - murmurou num tom de partir o coração. - "Eu quero - eu quero - qualquer coisa - para - para viver com ela."
Estive a ponto de lhe gritar: - "Não as ouve?" À nossa volta a escuridão repetia-as como um incansável segredo, um segredo que parecia avolumar-se, numa ameaça, como o primeiro segredo de um vento que começa a levantar-se. "O horror! O horror!"
- "A sua última palavra - para eu viver com ela" - insistiu. - "Não compreende que eu o amava - amava -
amava?"
Consegui dominar-me e falar pausadamente:
- A última palavra que ele disse foi - o seu nome.
Ouvi um suspiro leve e o meu coração deixou de bater, mortalmente parado por um exultante e terrível grito, pelo grito de um inconcebível triunfo e de uma indescritível dor.
Eu sabia - eu tinha a certeza!,...
Ela sabia. Ela tinha a certeza. Ouvi-a chorar, com o rosto escondido nas mãos.
Parecia que antes de eu sair aquela casa ia desmoronar-se, o céu ia cair-me na cabeça. Mas nada disso aconteceu. O céu não cai por tão pouco. Teria caído, pergunto a mim próprio, se eu tivesse feito ao Kurtz a justiça que lhe era devida? Ele não tinha dito que só queria justiça? Mas não pude. Não pude
contar-lhe nada. Seria tenebroso demais - tenebroso ao máximo...".

Por que estou descrevendo essas cenas pra vcs? Porque quero dizer que tem horas que só mesmo a expressão "O horror! O horror!" é capaz de dar conta do que vivemos e/ou assistimos no mundo, e tem horas que nem dizê-la conseguimos. Mas tem horas em que é preciso, para que continuamos a viver sem cairmos na mais profunda tristeza e depressão, mascarar estas impressões tão tristes e narrarmos a vida falando de amor, música, arte, dança, bobagens, amigos, afetos, novelas, bobeiras, festas, beijos, séries, o nome de quem amamos, qualquer coisa do campo da doçura e do prazer, pra que a vida possa seguir, porque narrar tudo o que nos choca e pasma e dilacera "seria tenebroso demais - tenebroso ao máximo...".

Espero que tenham entendido o que quis dizer aqui pra vcs, com todo o meu amor. Fiquemos firmes, "atentos e fortes", "mas sem perder a ternura". Nos chocando com o horror, nos comprometendo a narrá-lo e lutar pelo seu fim, mas sabendo que às vezes não dá, e isso também nos faz humanos.


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