Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Noutro dia, eu estava dando aula de Cultura Popular e, ao comentar sobre diversidade cultural, fiz um comentário-piada sobre pastelarias e chineses. Na hora quase todo mundo riu, mas alguns alunos ficaram sérios, embora não tenham feito qualquer comentário. Isso me alertou sobre algo dissonante e ficou retumbando na minha cabeça. Pensei sobre isso com calma e na aula seguinte pedi desculpas, aproveitando o acontecido para conversar com a turma sobre o lugar do preconceito no discurso, como "ao falarmos, somos falados", segundo afirma Michel Foucault, e reproduzimos preconceitos e estigmas que nos atravessam no fluxo das ordens discursivas.
Começo meu texto por aqui para dizer que sim, todos nós podemos incorrer em erros e deslizes preconceituosos, pois os imperativos das representações hegemônicas nos perpassam. E todos podemos e devemos pedir desculpas quando nos pegamos nestes processos. Dito isso, gostaria de tecer algumas ponderações sobre o comentário preconceituoso, estereotipante e estigmatizador de William Bonner, editor e âncora do Jornal Nacional, da Globo, na edição de ontem, dia 18 de maio de 2015, sobre um personagem estadunidense (pois se trata de um personagem, uma criação noticiosa, que, por um acaso, tem uma correspondência no "real", que é o próprio sujeito que ali está sendo representado, mas em última instância estamos diante de uma representação, e das mais breves e cerceadoras da diversidade, visto se tratar de uma imagem descontextualizada que é mostrada enquanto a voz do repórter narra a acusação) de uma reportagem sobre uma tentativa de hackear aviões e mexer em seus planos de voo. Bonner comenta, após ver a imagem do suspeito: "O mundo parece que tá ficando muito complicado, né... A gente vê até pelo rosto do sujeito que não tá fácil (...)". A seguir, completa o absurdo: "Cara de maluco ele tem, né? Cá pra nós...".
Minutos depois, na passagem da previsão do tempo, Bonner aproveitou o gancho para se desculpar, dizendo que nas redes sociais foram muitos os comentários desaprovando sua fala. Mas o pedido de desculpas, a meu ver, também precisa ser problematizado: "Teve gente que me censurou porque eu disse que aquele rapaz que entra no avião com um cabo no computador do avião tinha cara de maluco. Na verdade eu fiquei pensando: "que mau humor dessas pessoas"; mas não, elas estão certas. Porque depois eu fiquei fazendo uma reflexão. Eu conheço uma porção de gente com aquele cavanhaque, com o olho meio esbugalhado, mas eles não ficam entrando em avião, não. Não tem nada a ver o rosto do rapaz com o que ele fez ou disse que fez".
Em seu pedido de desculpas tangencial, em que a palavra "Desculpe" jamais aparece, dois pontos merecem destaque: primeiro, a maneira matreira pela qual Bonner reafirma que fez uma brincadeira, tanto que estranhou a falta de humor dos espectadores; depois, a admissão do erro porque não seria justo associar o rosto do rapaz à acusação de ser "maluco" (vou pular aqui os comentários sobre a definição estética do rosto do rapaz feita por Bonner, só isso a meu ver merecia nosso repúdio, mas vamos ao mais grave).
Bem, no meu ponto de vista, aí está parte do problema, do que me incomodou profundamente ontem. Em primeiro lugar, a utilização de um sistema classificatório perverso, instância fundamental de poder (novamente Foucault nos lembra que nas interdições discursivas estão a palavra mentirosa, a palavra proibida e a palavra louca), cuja rotulação causa imenso sofrimento e desconforto a todos por esse sistema classificados como "loucos", independentemente do critério. Ou seja, há uma intensa luta no campo discursivo e político para não se classificar ninguém como "maluco", não só por critérios físicos, mas por qualquer critério. É também sobre isso que fala a importante e sempre urgente Luta Antimanicomial.
Aí vem o segundo problema do infeliz episódio de ontem. Era  dia 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Caramba, isso era pra ser pauta do Jornal Nacional! Pra isso serve a mídia em concessão pública, pra abarcar as diversas demandas sociais. Não, no jornal total silêncio sobre isso. Ao contrário, seu âncora principal, porta-voz oficial, faz piada sobre "maluco". Isso ultrapassa e muito um simples episódio de piada sem noção, dentro de novo padrão de jornalismo/entretenimento, e se revela um escárnio, uma afronta, um indício revelador do quanto precisamos avançar na luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil.
Mas vamos voltar um pouco mais a Foucault. Ainda sobre as interdições do discurso, ele fala sobre uma estratégia importante das sociedades discursivas para impor seus limites: a autoridade e legitimidade de quem fala. Weber já havia nos alertado para isso, quando abordou as formas de dominação. Lugares simbólicos instituídos são decisivos, em termos de autoridade e legitimidade, para fixar o sentido discursivo, constituir seu caráter performativo, palavra que cria mundo, faz acontecer, vira realidade.
Por isso um professor precisa ter responsabilidade com o que fala em sala para seus 50 alunos. Por isso um apresentador de telejornal de maior audiência do país tem que ter cuidado com o que fala para milhares de receptores. E por isso o pedido de desculpas não pode ser tangencial, tem que ser pra valer, tem que problematizar a questão, tem que sair do reducionismo e da simplificação. Fora isso, é performance pra plateia, é show pra manter audiência, é manutenção do preconceito com outros condicionamentos.
Não, nao é a mesma coisa fazer uma piada sobre "ser maluco" com alguém na mesa do bar ou dizer isso enquanto editor do Jornal Nacional ao vivo. Não, não é a mesma coisa pedir desculpas complexificando a questão ou dando a entender que é uma bobagem com a qual os espectadores resolveram implicar. Sim, a autoridade de quem fala faz acontecer, é discurso fundador, mito original. E sim, a classificação "maluco" (e todas afins) precisa ser banida, por qualquer critério, porque é um rótulo perverso, perigoso, aprisionador e estigmatizante, causa sofrimento e é instrumento de poder e cerceamento da diferença.
E não se importar com isso, porque não te atinge diretamente, é ser cúmplice disso. Lembrando: a roda gira, qualquer hora a boa fortuna também pode te abandonar e o estigma virar pra você. Fica a dica.