Karina Limeira Brandão, mais conhecida como anaenne:
Amo formaturas! Tenho sido agraciada, ano a ano, com homenagens de meus alunos e alunas, o que me deixa sempre imensamente feliz e orgulhosa. Fui paraninfa e patronesse um tanto e isso sempre se constitui num desafio de criar discursos originais a cada vez. Já falei de ousadia, já fiz discurso de improviso, já citei Fernando Pessoa, Novos Baianos, já imitei a outra lá e copiei discurso de Michele Obama (ideia da minha mãe, hahahaha), já falei de política, do mercado de trabalho, da amizade, já fiz discursos mais personalizados em turmas pequenas, já falei de um tuuuudoooo. Mas o de ontem achei diferente, amei escrever e senti que teve um efeito forte. A pedidos, partilho aqui pra quem quiser ler. Com um grande beijo de agradecimento pra turma de 2016/2, que fez uma formatura linda, com discursos fortes, emocionantes, muito intensos. Valeu, gente! Um beijo grande também pros demais professores homenageados, meus queridos Marildo Nercolini, Antonio Junior e Bia Polivanov. Foi bonita a festa, pá! :)



Abaixo, o discurso na íntegra. Se prepara que lá vai textão. Mas sabe que até acho que vale a pena ler até o final? #fikaadika

Queridas e queridos formandos, colegas de universidade, familiares, amigos e amores, boa noite!

Antes de mais nada, obrigada, mais uma vez, por ser honrada com essa homenagem. Amo formaturas, é um prazer enorme estar aqui, me sinto muito lisonjeada todas as vezes em que me homenageiam nesses rituais. Portanto, começo agradecendo, de todo o coração.

Hoje quero falar de algumas coisas. Vou começar com um poema lindo de Hermann Hesse, sim, o escritor, aquele de Sidarta, O Lobo da estepe, Demian, que é também um poeta fabuloso. Pedirei ajuda a ele pra falar aqui hoje com vcs. Trata-se do poema de nome “O poeta”, composto lá nos idos de meados do século passado. Jesus!

À noite, eu muitas vezes não consigo dormir:
a vida dói.
Fico então a brincar com as palavras,
com as boas e as más,
com as gordas e as magras,
e vou nadando pelo espelho do mar delas.
Longínquas ilhas surgem com azuis palmeiras,
da praia sopra um vento perfumado,
na praia um menino cata conchinhas de várias cores,
banha-se em verde cristal uma mulher cor de neve.
Como no mar arrepiam-se as cores,
em minha alma flutuam sonhos-versos:
gotejam de prazer, enrijecem de luto,
bailam, correm, dispersam-se perdidos,
enrolam-se em palavras conformados com essa vestimenta,
interminavelmente vão trocando de som, forma e semblante,
parecem antiquíssimos e contudo cheios de inconsistência,
A maioria das pessoas não entende:
dão por loucura os sonhos e me dão por perdido
– e assim me veem mercadores, jornalistas, professores.
Crianças e mulheres muitas, de outro lado,
sabem de tudo e me amam como eu a elas,
pois também elas estão vendo o caos dos aspectos do mundo
e a elas também a deusa emprestou seu véu.

Amo esse poema, ele sempre me emociona muito.

Vou partir do final dele pra falar de vcs. Sabe o que mais amo em vcs? A alma curiosa, encantadora, de quem tem o mundo pra descobrir. Amo que vcs sejam crianças e representem o feminino, no sentido dado por Hesse no poema, como o não instituído, como a negação da ordem do discurso que encerra a diferença na loucura e vê os sonhos como perdidos. Quando vcs chegam no primeiro período e nos encontram, e aqui falarei especialmente por mim, Antonio e Marildo, com quem partilho há muitos anos esse momento limiar tão bonito, quase todos oriundos do ensino médio, tão jovenzitos, 17, 18 anos, mas mesmo os que chegam mais cascudos, vividos, mas encaram o começo ou o recomeço de uma nova faculdade, vcs chegam com esse olhar lúdico, meio assustado, meio marrento, meio amoroso, meio desconfiado, mas sempre dispostos a aprender, a trocar, a crescer junto.
E sabe o que vcs fazem com a gente? Vcs nos transformam. Falando especificamente de mim, a cada semestre, rejuvenesço um, dois, dez anos. Uma benção, nem meu cabelo quer embranquecer, pra desespero da minha irmã mais nova... E como se dá essa magia, pq é negócio de magia, minha gente!
Acontece assim, olha:
Quando vcs fazem cara de surpresa quando descobrem que negócio é negar o ócio, que tudo no mundo é híbrido, que essência é construção discursiva, que memória é uma ilha de edição, que não é possível separar o real da representação do real, que a mídia é lugar de manipulação mas também de disputas...
Quando vcs se engajam nos projetos, nos grupos de estudo, nos cineclubes, nas produções de eventos, nas pesquisas de iniciação científica, nas monitorias, no movimento estudantil, nas ocupações, nas diversas atividades do curso de mídia....
Quando vcs nos questionam, discordam, nos colocam pra pensar, nos fazem perguntas enigmáticas que embolam nossa cabeça, criticam nossos métodos, nos cobram novas epistemes, novas práticas, mais coerência entre o que estudamos e como atuamos em sala de aula...
Quando vcs me abraçam no corredor, me levam brigadeiro, biscoito, pedaço de bolo feito pelo mãe, trufa feita por vcs mesmos, me mandam recados lindos e amorosos pelas redes sociais, me enchem de afeto de um jeito que é quase inexplicável...
Quando vcs ficam com a respiração suspensa num aula que pega na veia, gente, nem tenho palavras pra descrever essa sensação, não é sempre, mas quando rola, caramba, novamente, parece coisa de magia, negócio de feitiço...
E também quando vcs me apresentam coisas novas, já escutou essa música, vc não pode deixar de ver essa série, e toma spoiler pq não temos a velocidade de vcs, pestes, já leu esse livro, olha esse vídeo, naenne, lembrei de vc quando vi essa meme, teach, dá uma lidinha nesse artigo maneiro, prof, vc não conhece spotfy ana, pelo amor!, to te mandando esse link aqui de um filme que fiz, quando der dá uma olhada e responde quando puder, ô ana, to te mandando uns poemas que eu fiz mas po vc nunca dá retorno, anaaaaaaaa, conhece esse youtuber, tem tudo a ver com sua aula...
 E quando vcs me escrevem, me procuram, me acham, às vezes nem me acham mas falam assim mesmo (rede social, email, é pra essas coisas, ne?), pra falar da vida, dos amores perdidos, dos problemas familiares, da falta de grana pra vir pra aula, das crises de ansiedade, das dúvidas com a disciplina, dos professores que só jesus na causa, do que fazer no tcc, das coisas que pensaram a partir da aula, quando puder tomamos um café, ana, a gente pode conversar um pouco, um dia podemos almoçar, hum, tenho uma vontade de ir num dos almoços na sua casa....
Quando vcs fazem trabalhos espetaculares, escrevem textos geniais, têm ideias de uma sagacidade fabulosa, interpretam os textos de formas inusitadas, escolhem objetos de pesquisa inesperados, produzem monografias de uma densidade enorme...
E quando mesmo não fazendo nada disso vcs nos mostram o quanto as aulas falaram com vcs, uma observação, um olhar, uma mudança corporal, um obrigado, um desenho, uma risada, uma presença em sala em um dia particularmente difícil...
Enfim, em cada um desses momentos, seus lindos, eu rejuvenesço, me refaço como pessoa, me transformo... e vcs me devolvem o olhar infantil pro mundo, me fazem novamente a criança, e me devolvem o olhar feminino pro mundo, expulsam de mim o instituído, “o mercador, o jornalista, o professor”... e acho todos os sonhos de novo sonháveis, bate em meu peito mais uma vez meu coração de estudante, e sigo acreditando que podemos mudar o mundo, fazer melhor, sermos melhores pessoas, bons amigos, filhos, amores, pais, pessoas no sentido mais amplo.
Sim, sei que, como diz o poema, às vezes não se consegue dormir porque a vida dói. E nesse momento pelo qual passamos no Estado do Rio, no Brasil e no mundo, a vida tem doído bastante. E sei que tem horas que essa pressão fica tão grande que vcs sofrem muito. Quero dizer pra essa plateia que está aqui: essa é uma geração guerreira, precisamos ficar atentos a isso, porqueca pressão que eles estão sofrendo não tá brinquedo, não. Aí nesses momentos aquele olhar de esperança e sonho para o mundo acaba perdendo um pouco seu lugar. É, tem vezes que não dá mesmo pra dormir, a vida dói...
Pois então, em retribuição a tudo o q vcs me deram nesses anos de faculdade, vou dar a vcs agora um presente mágico, um #ficaadika, um contra dom, como diz Marcel Mauss, uma dádiva, pra vcs usarem sem medo e sem parcimônia: quando tudo estiver parecendo sem saída, lembrem-se de vcs mesmos, quando chegaram aqui, em todos os anos passados na universidade, em que enfrentaram tantas adversidades e superaram, lembrem-se desse momento vitorioso e tão bonito que é essa formatura aqui. Lembrem-se de vcs mesmos, queridas e queridos, porque vcs são poderosos. Não esqueçam isso. Lembrem de vcs, como diz o poeta, que enxergam o caos dos aspectos do mundo porque estão vivos e são sensíveis, mas também de vcs a quem a deusa emprestou o seu véu para que continuem a sonhar, a desejar, a procurar, a aprender, a superar. Lembrem de vcs, de suas almas femininas e seus olhares de criança. Lembrem de vcs, aqueles olhinhos do primeiro período, esses olhares aqui e agora. Se vcs fizerem isso, sempre vão se curar dos males do mundo, como anualmente vcs me curam. Tamo junto! Mil vivas pra vcs, merecedores de nossos maiores aplausos!



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